A prisão em flagrante no Brasil segue uma receita clássica, descrita e repetida à exaustão nos depoimentos de policiais: “vi alguém em atitude suspeita, abordei a pessoa e constatei que estava praticando um crime”. Esse tipo de testemunho, muitas vezes copiado e colado em diferentes boletins de ocorrência, entra nos inquéritos policiais e é absorvido pelos processos de forma quase automática. Em grande parte dos casos, chega aos tribunais e fundamenta decisões condenatórias como única prova do crime.
Isso acontece porque o/a policial, por ser um/a funcionário/a do Estado, goza de fé pública – o que significa, na prática, que a sua palavra tem mais peso do que a de pessoas acusadas ou de outras testemunhas e que o conteúdo de seu depoimento é tomado como verdade, mesmo quando não está amparado por outras provas.
O peso desproporcional da palavra dos/as agentes é especialmente significativo nos crimes relacionados às drogas, nos quais não há vítimas e, portanto, os/as responsáveis pela prisão são muitas vezes os/as únicos/as capazes de descrever o ocorrido.
De acordo com uma pesquisa de 2018 da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 62% das sentenças em casos de tráfico estão baseadas exclusivamente no testemunho dos/as policiais. Um estudo realizado em 2015 pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) chegou a um resultado similar: 74% das prisões por tráfico de drogas no Estado contaram apenas com o testemunho dos/as policiais que realizaram a apreensão da pessoa acusada.
Para a psicóloga e professora Lilian Stein, é preciso reconhecer que, por mais que um/a agente se esforce para prestar um testemunho fidedigno, “sua memória, que também é humana, está submetida aos naturais processos de degradação, de esquecimento e de interferência”. Em outras palavras, não está imune ao que se chama de erro honesto – quando uma pessoa relata fatos ocorridos no passado, mas oferece informações que, influenciadas por falsas memórias, não são verdadeiras.
O não reconhecimento da falibilidade da memória dos/as policiais, à revelia dos avanços científicos no campo da Psicologia do Testemunho, gera distorções como a súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O texto autoriza sentenças condenatórias baseadas exclusivamente nesse tipo de depoimento e, na prática, exime o Ministério Público de produzir outras provas ao longo do processo penal.
Para o professor de Direito Felipe Freitas, a fé pública na palavra policial “cria um atalho para o trabalho que o Ministério Público deveria fazer, que é o trabalho de investigar”. “É como se a palavra do policial fosse ao mesmo tempo uma ordem de prisão e uma decisão judicial”, completa.