O Judiciário brasileiro é composto fundamentalmente de pessoas brancas e tem, como alvo preferencial, a população negra. De acordo com o mais recente Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, publicado em 2023 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), 83,9% dos magistrados e magistradas se declaram brancos, enquanto 14,5% se declaram pretos ou pardos. Os dados contrastam com o perfil da população brasileira, formada em sua maioria (56,1%) por pessoas negras, de acordo com o Censo Demográfico 2022/2023 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Essa estrutura desigual é apenas uma das manifestações do racismo que atravessa o sistema de Justiça. Para Eduardo Ribeiro, diretor-executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, a política criminal atual “é mais um lugar nesse percurso de manutenção das hierarquias sociorraciais históricas construídas no período escravista”.
Os sinais dessa continuidade histórica estão por todos os lados. Um exemplo é a interpretação que se dá ao artigo 244 do Código de Processo Penal, que autoriza a busca pessoal em abordagens policiais em caso de “fundada suspeita” de que a pessoa abordada esteja em posse de objetos ilícitos ou relacionados à prática de ilícitos. A “fundada suspeita” é um conceito aberto e impreciso que é usado cotidianamente pelas polícias para justificar abordagens contra a população majoritariamente negra das periferias.
O uso de “álbuns de suspeitos” em procedimentos de reconhecimento é outra faceta desse mesmo racismo. De acordo com um levantamento do Condege (Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais), 83% das vítimas de prisões injustas feitas a partir de reconhecimentos fotográficos irregulares são negras.
Outro exemplo é a violência das operações policiais nas periferias, que frequentemente resultam em mortes. “Sempre que alguém é assassinado de forma violenta na favela, a primeira cena que a gente vê é uma mãe chorando e dizendo ‘vai buscar a carteira de trabalho’. Você tem que provar que o seu morto não está envolvido com coisas erradas, porque, para a sociedade, ele deveria morrer mesmo”, afirma o ativista Raull Santiago.
Essa realidade de violência projetada e infligida sobre os corpos negros é interpretada de maneira desigual pelos juízes e juízas.
“Racismo também é crime, assim como o tráfico, mas a gente não vê o sistema de Justiça agindo de forma enérgica para o enfrentamento desse crime”, explica a advogada de direitos humanos Sheila Carvalho. “Quantas vezes uma denúncia de racismo não virou uma injúria racial? E aí, a partir disso, uma contravenção sem valor? E quantas vezes um tráfico de mínima relevância vai parar no STJ? Há uma seletividade na própria escolha de quais crimes esse sistema pró-encarceramento, pró-direito penal máximo, vai atender.”
Para o professor de Direito Felipe Freitas, “o racismo faz com que se lance bastante luz sobre as forças policiais, compostas majoritariamente por pessoas negras na sua base, e deixe de prestar atenção no papel de juízes e promotores, em sua maioria brancos, têm na convalidação dessa violência”.