Corpos superexpostos
Passar por uma abordagem policial pode significar violências físicas e psicológicas graves, tal como identificou o levantamento “Por que eu?” feito pelo IDDD e o data_labe (disponível abaixo), mas não só. Para muitas pessoas, especialmente jovens negros/as das periferias, o encontro com a polícia pode resultar em morte. A advogada e pesquisadora Poliana da Silva Ferreira investigou o tema a fundo e analisou como o sistema de Justiça e suas instituições se articulam para blindar “a polícia que mata” de responsabilização (a dissertação “A responsabilização da polícia que mata: um estudo de caso sobre o tratamento jurídico das abordagens policiais com resultado morte” pode ser lida na íntegra aqui).
De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, as polícias mataram 6,4 mil pessoas no país – uma média de 17 por dia. Ainda segundo o levantamento, 83% das vítimas eram negras. Os dados refletem o viés racial da violência do Estado e são também um atestado da falta de transparência das polícias.
“Nós não temos dados. A principal ferramenta que utilizamos para falar do panorama da letalidade policial no Brasil é construída por uma organização não governamental. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem contribuído para que possamos nacionalizar o debate sobre a letalidade policial e o uso da força no país através da Lei de Acesso à Informação, mas a gente não tem um conteúdo direto e nacional sobre o tema. E quando olhamos para as polícias de cada estado, percebemos uma deficiência muito grande no compartilhamento de informações sobre o que acontece nas ruas”, explica Ferreira.
“A gente pode ter esse panorama quantitativo das intervenções policiais com resultado morte, mas cada estado nomeia de maneira diferente o ato da polícia de matar administrativamente. Do ponto de vista criminal, a gente fala cada vez com mais frequência dos homicídios dolosos praticados por policiais contra civis ou mesmo homicídios culposos.”
Para ela, do ponto de vista social, a falta de transparência e de dados públicos faz com que as polícias brasileiras “estejam fora de controle”. Um exemplo objetivo desse estado de coisas, segundo Ferreira, é o tratamento dado aos protocolos de atuação, ou protocolos operacionais padrão. De acordo com a pesquisadora, as polícias se aproveitaram de brechas na Lei de Acesso à Informação de 2011 para torná-los sigilosos.
“O resultado disso é que a cidadania acaba perdendo elementos importantes para a produção de controle social. A gente sabe muito pouco sobre como a polícia deve agir.” Segundo Ferreira, essas informações são imprescindíveis para que se possa compreender como a polícia se auto-avalia e se auto-organiza para os seus encontros com os/as cidadãos/ãs nas ruas. “A gente tem avançado pouco na parametrização dessa atuação. Se a gente quisesse avaliar o controle interno das polícias brasileiras, o que é que a sociedade civil teria de informação?”, questiona.
Para ela, a consequência da falta de acesso é a impunidade, mas também a impossibilidade de qualificar os níveis de impunidade, os graus de responsabilização ou não responsabilização. “A gente não consegue ter um balanço de quantos policiais foram exonerados porque mataram em serviço, ou porque lesionaram alguém, ou porque praticaram injúria racial”, explica. Ela ressalta que as corregedorias não têm conseguido suprir essa falta de informações, tampouco o Ministério Público – instituição que tem a atribuição constitucional de fazer o controle externo das forças policiais. “O contexto é desanimador, mas ajuda a gente a colocar os pés no chão e entender o tamanho do nosso desafio.”