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Abordagem: o “enquadro” como método

abril 28, 2024

“Filho, não esquece de levar o documento.” Essa frase, tão comum nos lares das periferias brasileiras, sintetiza uma das muitas violências a que estes territórios estão submetidos cotidianamente: a das abordagens policiais. Todos os dias, moradores dessas comunidades são submetidos a buscas pessoais, muitas vezes abusivas e violentas, que na prática limitam seu direito de ir e vir em liberdade.

Segundo levantamento feito pela Ponte Jornalismo, entre 2005 e 2023 a polícia de São Paulo realizou mais de 225 milhões de buscas pessoais, ou uma para cada habitante no país. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública paulista, somente no ano de 2022 foram mais de 9,2 milhões de “enquadros” no estado. Se fizermos uma relação direta entre o número de abordagens com o total de prisões em flagrante realizadas no mesmo período, estima-se que somente 1% das buscas pessoais resultou em flagrante – o que mostra que, além de violentas, as abordagens são pouco efetivas no combate à criminalidade.

Atualmente, as buscas pessoais estão previstas no artigo 244 do Código de Processo Penal, que estabelece que elas podem acontecer, independentemente de mandado, quando há uma “fundada suspeita” por parte da polícia de que uma pessoa esteja em posse de arma proibida ou de objetos que constituam corpo de delito. Na prática, isso significa que cabe ao agente de segurança definir se há uma “fundada suspeita” sobre determinada pessoa.

De acordo com o advogado Thiago Amparo, essa avaliação, que deveria ser técnica e objetiva, acaba sendo inevitavelmente contaminada pelos estereótipos e preconceitos da sociedade brasileira, que é profundamente racista. “Mesmo que uma abordagem não seja letal, ela viola direitos por ser generalizada, constante e discriminatória contra um grupo específico”, completa.

Uma pesquisa realizada pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e o data_labe revelou que quase 90% das pessoas negras submetidas a buscas pessoais sofreram violências físicas, verbais ou psicológicas. Entre as pessoas brancas, o índice foi de 66%.

O uso de abordagens policiais para controlar a população negra não é exclusividade do Brasil. Em 2008, uma ação coletiva questionou na Justiça a prática conhecida como “Stop and Frisk”  da polícia de Nova York, que consistia na realização de enquadros massivos contra pessoas majoritariamente negras e latinas sem suspeita razoável. O processo foi concluído com a vitória das vítimas e com o estabelecimento de protocolos para colocar freios ao perfilamento racial por parte das forças de segurança.

Um caso analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou a Argentina por uma abordagem policial discriminatória em 2020 (Fernández Prieto & Tumbeiro vs. Argentina), também abriu um importante precedente para contestar “enquadros” racistas na Justiça brasileira. O STF (Supremo Tribunal Federal) teve a chance de fortalecer ainda mais essa jurisprudência no julgamento do HC 208240, que pediu que a Corte reconhecesse a ilegalidade de uma abordagem policial motivada pela cor da pele do suspeito e que derivou na prisão e condenação do jovem por porte de 1,53 g de cocaína. No julgamento foi fixada a tese de que as abordagens policiais motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física são ilegais, no entanto, o Supremo manteve a condenação do rapaz.

Além disso, está em discussão na Câmara dos Deputados um projeto de lei (3060/2022) que altera a redação do artigo 244 do Código de Processo Penal e coloca limites às buscas pessoais. A proposta foi concebida pelo IDDD com o apoio de especialistas e determina que, caso haja necessidade de busca pessoal, os policiais devem lavrar um auto no qual se identifiquem e especifiquem a localidade onde o fato ocorreu, a identificação da pessoa submetida ao procedimento (raça, identidade de gênero, idade e nacionalidade), detalhes sobre as motivações que levaram à suspeita, além de uma descrição de como foi o procedimento.

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