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Reconhecimento: quando a memória mente

abril 28, 2024

O reconhecimento pessoal é, ao lado do testemunho, um dos meios de prova mais importantes no processo criminal brasileiro e consiste, basicamente, em expor uma vítima ou testemunha de um crime a possíveis autores/as. Do ponto de vista da memória de quem passa pelo procedimento, significa contrastar uma informação visual recebida no presente com uma informação visual registrada no passado.

O ato parece simples e óbvio, mas é hoje uma das maiores fontes de condenações injustas no País. Isso porque, no reconhecimento, a forma é tão importante quanto o resultado. Em outras palavras, a maneira como se colhe a informação da vítima ou testemunha pode determinar o desenlace do processo de forma fatídica – como no caso de Paulo Alberto da Silva Costa, homem negro de 36 anos acusado em 62 processos por conta de reconhecimentos irregulares.

Em 2015, a iniciativa Innocence Project, nos Estados Unidos, analisou 300 casos de condenações injustas e verificou que, em 71% dos casos, um/a suspeito/a inocente havia sido reconhecido/a de forma equivocada. Um levantamento similar foi realizado pela Folha de S.Paulo em 2021: dos 100 casos de prisões injustas avaliados pelo jornal, 42% estavam diretamente relacionados a “procedimentos de reconhecimento feitos ao arrepio da lei”. Nestes casos, 71% das pessoas falsamente acusadas eram negras.

Essa fragilidade dos procedimentos de reconhecimento se dá porque ele depende basicamente da memória da vítima ou testemunha. “A memória não funciona como uma máquina fotográfica ou uma filmadora”, explica a psicóloga e professora Lilian Stein, especialista em Psicologia do Testemunho. “Ela está sujeita a fatores naturais, como a degradação gradual a partir da passagem do tempo – e estamos falando de dias e semanas. E essa perda de nitidez deixa aberta a possibilidade para intrusões que geram o que a gente chama de falsas memórias”, completa.

“O que vemos nos estudos mais recentes é que os reconhecimentos feitos a partir de show-ups estão errados em quase 50% das vezes. Portanto, reconhecer alguém é tão efetivo quanto adivinhar”, diz Alexis Agathocleous, vice-diretor jurídico do Center for Constitutional Rights dos Estados Unidos. “É muito importante limitar drasticamente as circunstâncias em que os show-ups podem ser utilizados no processo penal”, completa.

Show-up é um procedimento por meio do qual uma única pessoa suspeita – ou sua fotografia – é apresentada isoladamente para que a  vítima ou testemunha indique se ela é a autora do crime.

Como alternativa ao show-up deve ser utilizado o alinhamento, que consiste em uma fila de pessoas entre as quais figura um/a suspeito/a. Essa forma de organizar o procedimento de reconhecimento está prevista no artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz o seguinte:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

O artigo foi redigido em 1941 e não incorpora os avanços científicos na área da Psicologia do Testemunho. Tampouco chega a mencionar o reconhecimento fotográfico. Mesmo assim, é sistematicamente descumprido nas delegacias de todo o país. Não é raro, por exemplo, que policiais apresentem às vítimas ou testemunhas um álbum com fotos de suspeitos – muitas delas compartilhadas em redes sociais.

“O procedimento deveria acontecer no ambiente da delegacia, com todos os cuidados para que o resultado desse reconhecimento não seja contaminado”, explica Hugo Leonardo, conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). “Muitas vezes uma pessoa é mostrada individualmente para a testemunha ou vítima com a indicação de que a polícia chegou à informação de que seria a autora do crime. Isso não é um reconhecimento, é quase uma chancela do que as autoridades estão dizendo”, diz.

No âmbito do projeto Prova sob Suspeita, o IDDD elaborou uma lista de 15 proposições para subsidiar mudanças na forma como o Sistema de Justiça brasileiro lida com o reconhecimento pessoal no processo criminal. Entre os enunciados estão os seguintes:

  • O reconhecimento de pessoas, presencial e fotográfico, deverá ser precedido pela descrição, realizada de forma livre, da pessoa suspeita e das condições de observação.
  • O reconhecimento de pessoas, presencial e fotográfico, deverá respeitar a formação de um alinhamento justo, garantindo, cumulativamente, (i) que nenhuma pessoa suspeita se sobressaia em relação às outras e (ii) que as pessoas não suspeitas atendam às descrições apresentadas pelas vítimas ou testemunhas.
  • O reconhecimento de pessoas na investigação deverá observar, no mínimo, o procedimento previsto no artigo 226 do CPP, e sua inobservância implicará a inadmissibilidade do elemento informativo.
  • Sob nenhuma hipótese o reconhecimento será feito com a exibição apenas da pessoa suspeita ou de sua fotografia.

Entre 2021 e 2022, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) instituiu um grupo de trabalho sobre reconhecimento pessoal que reuniu especialistas de todo o País. Um dos resultados da iniciativa foi a aprovação de uma resolução estabelecendo diretrizes para o procedimento e para a análise desse tipo de prova pelo Judiciário, além da redação de um anteprojeto de lei para atualizar as regras previstas no Código de Processo Penal.

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