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Juan E. Méndez: “A coerção conspira contra a confiança na polícia e na Justiça”

abril 29, 2024

Técnicas de interrogatório ultrapassadas e incorporadas pelas forças policiais com o falso argumento de que teriam efetividade comprovada contra a criminalidade colocam em risco a realização da justiça. Pior: aumentam a desconfiança dos cidadãos e cidadãs na instituição policial e no Judiciário. Essa é a uma das conclusões de Juan E. Méndez, professor residente em Direitos Humanos do Washington College of Law da American University (Estados Unidos) e ex-relator especial das Nações Unidas para a tortura (2010-2016), em entrevista concedida ao Prova sob Suspeita em abril de 2024.

Em seu vasto currículo também se destaca a liderança no processo de elaboração dos Princípios sobre Entrevistas Eficazes para Investigação e Coleta de Informações – um conjunto de seis diretrizes publicado em 2021 com o apoio da Associação para a Prevenção da Tortura e do Centro Norueguês para os Direitos Humanos. Confira abaixo a entrevista:

IDDD – Qual é a importância do momento do testemunho para o processo penal?

JM – A entrevista no decorrer da investigação de crimes é de fundamental importância para o sucesso do eventual processo criminal, e também para o cumprimento efetivo das garantias que todo cidadão tem quando entra em contato com a administração da justiça criminal do Estado.

Isso se aplica tanto aos casos em que uma pessoa suspeita de ter cometido um crime é investigada quanto na coleta de depoimento de uma vítima ou testemunha. É nesse estágio inicial de uma investigação criminal que a tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante é mais frequentemente utilizado, ou quando uma coerção de qualquer tipo é usada para extrair confissões ou declarações contra outras pessoas.

A pressa em “resolver” um caso criminal é, por si só, um fator que coloca qualquer pessoa envolvida como suspeito, testemunha ou vítima em uma situação vulnerável; esse é, portanto, o momento em que as garantias legais fundamentais inerentes à pessoa humana estão em jogo.

Mas é também um momento decisivo para a eficácia da investigação dos crimes e o eventual resultado do processo judicial que tentará restaurar os direitos das vítimas do crime e evitar a impunidade. Isso porque, em um Estado Democrático de Direito, as provas obtidas através de violação às regras que protegem as pessoas contra a coerção e a tortura devem ser excluídas do processo, o que pode resultar na ineficácia do processo judicial.

IDDD – A partir de sua experiência como relator especial das Nações Unidas sobre tortura, qual é a sua avaliação sobre os métodos utilizados pela maior parte dos países para a coleta de testemunhos? 

JM – Em minha experiência como relator, observei que, em muitos países, a coleta de provas durante a investigação é marcada por falhas e nulidades. Os depoimentos, mesmo os de testemunhas e vítimas, são frequentemente coletados com um alto grau de hostilidade e até mesmo agressão. Isso é ainda mais notável, é claro, no interrogatório de uma pessoa suspeita de ser um perpetrador ou cúmplice do crime.

Mesmo em jurisdições nas quais a declaração feita fora do tribunal não tem valor probatório, a prática dos investigadores de polícia é cercada de coerção e constrangimento como forma de “resolver” o caso.

Não é preciso dizer que qualquer pressão para obter a cooperação do entrevistado viola seus direitos fundamentais e torna todo o processo subsequente nulo e sem efeito. Além disso, do ponto de vista do objetivo de chegar à verdade, a coerção se presta ao que chamamos de “viés de confirmação”, que leva os interrogadores a perguntar apenas aquilo que confirma o que eles já concluíram ser a verdade, resultando em um desvio do objetivo inicial, que é estabelecer como os fatos ocorreram.

IDDD – De que maneira esses métodos influenciam a realização da Justiça?

JM – Os métodos coercitivos prejudicam o êxito das investigações pelas razões já mencionadas, e também violam sistematicamente princípios fundamentais como a presunção de inocência, o direito de não testemunhar contra si mesmo, o direito a um advogado desde o momento da privação da liberdade e também o direito de confrontar as provas existentes contra a pessoa sob investigação.

Basicamente, a coerção – física ou mental – conspira contra o próprio objetivo da entrevista investigativa, que é estabelecer a verdade dos fatos. Para além disso, quando a prática coercitiva é sistemática ou generalizada, ela conspira contra a confiança cívica que a instituição policial (e o próprio sistema judiciário) deve ter para cumprir seu objetivo social de servir e proteger os cidadãos.

Os métodos repressivos fazem com que a polícia, como instituição, seja temida, mas não respeitada e merecedora da cooperação espontânea dos membros da sociedade. E sem a cooperação espontânea e voluntária da população, o policiamento se torna muito mais difícil.

IDDD – A que tipo de situação os “Princípios sobre Entrevistas Eficazes para Investigação e Coleta de Informações” se aplicam e quem são seus principais beneficiários?

JM – Os Princípios sobre Entrevistas Eficazes têm como objetivo estabelecer os fundamentos de um método de entrevista baseado no rapport (criação de condições de confiança mútua), ratificar que o objetivo da entrevista não é a confissão, mas o esclarecimento da verdade – e, é claro, também servir como uma ferramenta para a prevenção de tortura e os maus-tratos. É por essas razões que os Princípios foram elaborados visando a interlocução natural com o policial ou promotor encarregado dessa difícil tarefa, que é crucial para a eficácia do processo e também para a imagem social da instituição policial.

Porém, também está claro que os Princípios têm como objetivo salvaguardar melhor os direitos de todas as pessoas envolvidas no processo investigativo, uma vez que sua aplicação prática deveria reafirmar as responsabilidades de cada funcionário – na esfera de suas funções – para dar efeito a esses direitos. Acredito também que os Princípios oferecem ferramentas para os funcionários de toda a administração da justiça criminal e, mais especialmente, para a defesa pública e privada, pois estabelecem pontos de referência para analisar se a investigação cumpriu efetivamente as normas que determinam a admissibilidade ou exclusão de provas.

IDDD – Um dos principais fundamentos dos Princípios são as pesquisas científicas. Como a ciência vem contribuindo para melhorar a Justiça no que se refere à coleta de testemunhos? 

JM – O Princípio 1, em particular, inclui a extensa literatura acumulada nas últimas décadas para demonstrar que não é verdade que a tortura “funciona” no sentido de obter informações confiáveis para avançar na busca por justiça. No sentido inverso, o método de entrevista com foco no rapport é apoiado por pesquisas científicas multidisciplinares muito sólidas, também resumidas nas referências que acompanham nosso Princípio 1.

O segundo Princípio descreve em linhas gerais esse método do rapport, que é aplicado com sucesso em várias jurisdições e tem o mérito de encontrar sua justificativa na ciência, na ética da profissão policial e nos direitos humanos mais fundamentais. Também devo mencionar que a pesquisa científica de várias disciplinas forenses também contribui para a construção de um modelo que vai além da tortura e da coerção na luta contra o crime.

Outros instrumentos jurídicos não vinculantes (“soft law” no direito internacional), como os Princípios, também contribuem nesse sentido. Refiro-me a documentos que adquiriram valor significativo nas últimas décadas, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, atualizadas em 2015 e agora chamadas de “Regras de Mandela”. Também devemos citar o Protocolo de Istambul para documentar a tortura a partir de perspectivas médicas e psicológicas, originalmente redigido por especialistas independentes em 1999 e atualizado em 2022 com a incorporação de inúmeros avanços científicos e a prática concreta de seu uso em vários ambientes. O Protocolo de Minnesota, que instrui sobre como proceder para investigar e punir execuções sumárias ou extrajudiciais, também foi atualizado em 2017 pelo ex-relator da ONU sobre o assunto, Christof Heinz.

IDDD – Quais são os avanços científicos que mais impactaram a forma como se coletam declarações nas entrevistas?

JM – Acredito que os estudos científicos, conduzidos com rigor e metodologias comprovadas, corroboram que as confissões obtidas sob coerção ilegal de qualquer tipo não são confiáveis. Os erros judiciais, demonstrados em muitos casos por provas de DNA realizadas, entre outros, pelo Innocence Project em vários países, resultaram na anulação de condenações injustas. Mas, o que é mais importante, expuseram a falácia dos métodos baseados em intimidação e coerção, quando não na própria tortura.

Técnicas erroneamente chamadas de “dissuasão”, baseadas em ameaças de prejuízo processual, em pressão contínua durante horas, na negação do direito de consultar um advogado em tempo hábil, em mentiras deliberadas sobre a existência de outras provas, são todas manifestações de um método que, em séculos passados, classificava a confissão como “a rainha das provas”.

Da mesma forma, a indução à admissão de responsabilidade, às vezes fingindo compreensão e depois alternando com agressão (técnica do Good Cop/Bad Cop), foi até recentemente vendida às forças policiais como uma técnica que poderia ser ensinada com falsos fundamentos na psicologia. Na minha opinião, os estudos em criminologia, psicologia e neurologia sobre o comprometimento da memória decorrente de tratamento abusivo, analisados e relatados com base em análises de casos reais, forneceram um conhecimento decisivo sobre a necessidade de abandonar práticas que são ineficazes na persecução criminal, prejudiciais aos direitos humanos e perigosas para o Estado de Direito.

IDDD – Os Princípios também têm uma dimensão prática e mostram o que é preciso fazer, do ponto de vista da implementação, para garantir a adequada coleta de informações durante os testemunhos. Para o senhor, quais são os principais desafios em matéria de implementação para um país como o Brasil?

JM – No Brasil e em muitos outros países, o desafio que enfrentamos é a inércia que ainda existe nos métodos que corromperam a instituição policial. Ainda mais grave é a situação da opinião pública, que, ferida pelo aumento da criminalidade, tende a se opor às tentativas de reforma que – argumenta-se falsamente – “amarrariam as mãos da polícia” em um momento em que supostamente é necessária uma “mão forte”.

Estamos vendo um progresso nas academias de polícia e entre os quadros geracionais recrutados mais recentemente, mas ainda há um longo caminho a percorrer até que as altas patentes (e também as autoridades políticas com responsabilidades nessa área) reconheçam a ineficiência dos métodos coercitivos e assumam seu papel legítimo de liderança, conforme estabelece o Princípio 6.

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