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Floyd, Prieto e Tumbeiro

abril 29, 2024

Nova York, fevereiro de 2008. David Floyd tinha 28 anos e foi violentamente abordado pela polícia enquanto ajudava um vizinho, inquilino de sua avó, que havia ficado trancado para fora de casa. Seu caso era o de muitos: um levantamento mostra que 84% das vítimas de abordagens policiais feitas na cidade entre 2003 e 2007 eram negras ou latinas.

A prática de parar e revistar pessoas pertencentes a esses grupos sem qualquer suspeita razoável, conhecida como “stop and frisk”, foi questionada na justiça por uma articulação entre a ONG Center for Constitutional Right, grupos de incidência política, ativistas e membros das comunidades mais atingidas pelos abusos policiais. O caso de David foi um dos que serviram de base para esse processo.

Após intensa mobilização da sociedade, em 2013 a forma como a política de “stop and frisk” vinha sendo empregada pela polícia de Nova York foi finalmente  declarada inconstitucional. Além disso, a sentença determinou que a polícia de Nova York renovasse integralmente seus protocolos sob a supervisão de um observador independente, além de instaurar um processo coletivo de reparação envolvendo advogados/as, comunidade e prefeitura. Veja abaixo um HQ do caso feito pelo quadrinista Rafael Coutinho.

Mar del Plata, maio de 1992. O comerciante Carlos Alberto Fernández Prieto, de 45 anos, estava com outros dois homens em um carro. Sua presença em uma zona erma da cidade foi suficiente para despertar a suspeita de uma patrulha policial, que os interceptou e revistou o veículo. Fernández Prieto foi preso, acusado de transportar drogas, e condenado à prisão. Ele recorreu da sentença, mas a Justiça argentina nunca reconheceu a ilegalidade da abordagem.

Buenos Aires, janeiro de 1998. O eletricista Carlos Alejandro Tumbeiro caminhava ao meio-dia quando foi parado por agentes policiais que questionaram a sua presença naquela região da cidade. Ele explicou que buscava uma loja de equipamentos elétricos. Alegando que Tumbeiro estava nervoso e que não trajava roupas adequadas ao bairro, a polícia o fez subir em um carro de patrulha e se despir. Os agentes alegaram ter encontrado com ele uma pequena quantidade de cocaína envolta em jornal. O eletricista foi condenado por porte de drogas.

A semelhança entre os casos fez com que uma ação fosse apresentada contra a Argentina na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica. Em sentença publicada em 2020, a Corte reconheceu a ilegalidade das abordagens policiais discriminatórias. A decisão tem repercussão em todos os países sob a jurisdição do tribunal, inclusive o Brasil.

Essas três histórias separadas no tempo e no espaço expõem os problemas da falta de critérios objetivos nas abordagens policiais. O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que foi admitido como amicus curiae no caso Fernández Prieto & Tumbeiro vs. Argentina, argumentou em sua sustentação que esses casos expõem a “realidade histórica de muitos países da América Latina. Uma narrativa que tem como ponto central a utilização de preconceitos e estereótipos pautando uma ação estatal e policial marcada pela violência e pelo insistente desrespeito a garantias e direitos fundamentais”.

Para o Instituto, conceitos como “atividade suspeita” ou “fundada suspeita” são indefinidos e impedem de prever as hipóteses em que as abordagens policiais são justificáveis e legais – o que contraria, segundo a organização, a Convenção Americana de Direitos Humanos.

“Para agentes policiais acostumados a agir a partir de estereótipos formados dentro de uma história de violência e abuso estatal, a roupa, o aparente poder aquisitivo e nível social e mesmo a cor da pele (um negro em um bairro cuja população seja majoritariamente branca) se transformam em suspeita capaz de justificar o afastamento de direitos e até a violência”, diz a entidade no documento enviado à Corte IDH.

O IDDD também foi admitido como amicus curiae em um caso que começou a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em março de 2023. O Habeas Corpus (HC) 208240 foi apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de Francisco Cicero dos Santos Júnior, condenado por portar 1,53 grama de cocaína. A abordagem policial ocorreu na cidade de Bauru às 11h, quando Francisco estava em pé, parado ao lado de um carro. No boletim de ocorrência, os agentes afirmaram que o rapaz foi considerado suspeito por ser “um indivíduo de cor negra em cena típica de tráfico de drogas”.

O julgamento foi concluído em 11 de abril de 2024, com a fixação da tese de que as abordagens policiais motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física são ilegais. Para o STF, a busca pessoal sem mandado judicial deve estar fundamentada em indícios de que a pessoa carrega objetos que foram ou serão usados em crimes. Apesar do entendimento fixado, o próprio Supremo manteve a condenação de Francisco.

Segundo Priscila Pamela dos Santos, vice-presidente do IDDD, a tese não traz nada de novo. “O racismo já é crime, as abordagens racistas já são ilegais. Logo, mesmo expressando que elementos discriminatórios tornam as buscas pessoais ilícitas, o STF não estabeleceu critérios claros e objetivos para determinar o que poderia ou não ser considerada fundada suspeita para uma abordagem, e com isso não avançou além do que já está previsto no artigo 244 do Código de Processo Penal”, analisa.

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