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Justiça e negacionismo: como magistrados fecharam os olhos para a pandemia nas prisões (POR/ENG)

Relatório do Mutirão Carcerário Covid-19 identificou que Justiça só concedeu liberdade a 26% dos quase 450 atendidos que se enquadravam em recomendação de desencarceramento do CNJ

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Relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a esmagadora maioria (74%) das pessoas presas que deveriam ter sido beneficiadas pela Recomendação n.º 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com liberdade provisória ou outras medidas alternativas à prisão, foram mantidas no cárcere durante o primeiro ano da pandemia.

Publicada em março de 2020, a Recomendação 62 do CNJ convocou magistrados brasileiros a prestarem especial atenção à necessidade de redução da população carcerária nos casos de idosos, demais grupos de risco da Covid-19, além de acusados de crimes sem violência ou grave ameaça. A orientação se deu em razão das condições insalubres das prisões do país, locais considerados de maior transmissibilidade de doenças infecciosas, dada a superlotação e impossibilidade de cumprir protocolos sanitários, a começar pelo distanciamento físico e dificuldades na circulação do ar.

Reunindo informações de 448 atendidos por um grupo com 92 advogados e 11 estudantes de Direito, entre abril de 2020 e janeiro deste ano, o levantamento do IDDD revelou que mesmo as 118 pessoas soltas (26% do total), só o foram após 207 pedidos de liberdade negados em instâncias anteriores.

“Os resultados desse mutirão carcerário são preocupantes. O Judiciário, que buscou proteger seus membros deixando de realizar uma série de procedimentos e atos processuais presenciais, se desvencilhou da responsabilidade com a preservação das vidas de pessoas sob custódia do Estado. E isso está documentado não só nos números, mas também no conteúdo de suas determinações”, observa o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Leonardo se refere a decisões como a proferida por uma Vara de Embu das Artes, SP, em maio de 2020, negando pedido de liberdade a um jovem de 21 anos, acusado de tráfico e preso no Centro de Detenção Provisória II (CDPII) de Osasco. “Em meio à crise de saúde pública que vivenciamos, a libertação do agente poderia representar risco a sua saúde, considerando não termos notícias de presos infectados no presídio do agente (sic)”, afirmou o magistrado. À época, a unidade apresentava taxa de contágio de mais de 25%, isto é, aproximadamente oito vezes maior que a do município em que o CDP está localizado.

Negacionismo no Judiciário

Os números mostram ainda que, apesar de 100% dos pedidos dos advogados terem como base a Recomendação 62 – e, portanto, a emergência sanitária -, em mais da metade (52,5%) das concessões de liberdade a pandemia nem sequer foi mencionada pelos magistrados.

“Se os juízes constataram a desnecessidade da prisão por motivos que não estavam relacionados à pandemia, precisamos perguntar, então, por que elas estavam presas”, questiona Vivian Peres, assessora de projetos do IDDD. Ela lembra que é papel do Poder Judiciário estar atento à situação processual das pessoas no cárcere e cita o art. 316 do Código de Processo Penal, que determina a realização de revisões periódicas por parte dos juízes sobre as prisões que decretam.

Ao analisar as decisões que mantiveram as prisões, o IDDD identificou que 39% (81) delas se referiam explicitamente à Recomendação 62, fato que sugere que os magistrados citam a orientação muito mais para deslegitimá-la do que para reforçar seu caráter de medida de proteção à vida e à saúde.

“Tendo em vista que a taxa de menção ao documento do CNJ nos decretos favoráveis foi de 28% contra 39% nos negativos, concluímos que a Recomendação 62 acabou sendo mais usada pelos magistrados para negar do que para conceder liberdade. A orientação foi sendo esvaziada por uma atitude negacionista que coloca em risco a vida das pessoas encarceradas”, conclui Peres.

Se em março de 2020, antes da primeira morte por Covid-19 em um presídio brasileiro, a Recomendação 62 do CNJ sinalizava para juristas preocupação do órgão com a vida e a saúde das pessoas encarceradas, a prática mostrou que a orientação não tem atingido seu propósito humanitário.

“Esse diagnóstico do IDDD permite suscitar, inclusive, questões a respeito da responsabilidade do Judiciário em mortes evitáveis durante essa calamidade. É um documento que traz fortes indicativos de deturpação do papel de garantidor da lei e de direitos fundamentais por parte das autoridades”, finaliza o presidente do IDDD, Hugo Leonardo.

Clique aqui para baixar o relatório.

 


 

Justice and denial: how judges turned a blind eye to the pandemic in prisons 

State judges, federal and constitutional courts only granted freedom to 26% of the almost 450 people attended who fit in the CNJ’s release recommendation

A report on how the Judiciary dealt with the pandemic in prisons, launched on June 2021 by the Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), shows that the overwhelming majority (74%) of the people arrested who should have benefited from Recommendation No. 62 of the Conselho Nacional de Justiça (CNJ), with provisional release or other measures alternatives to prison, were held in prison for the first year of the pandemic. 

Published in March 2020, CNJ’s recommendation No. 62 called on Brazilian judges to pay special attention to the need to reduce the prison population in cases of elderly people, other risk groups of Covid-19, and persons accused of crimes without violence or serious threat. The orientation was issued due to the unhealthy conditions of prisons in Brazil, which are places considered to have the highest transmissibility of infectious diseases because of the overcrowding and impossibility of regarding the sanitary protocols, such as physical distance and difficulties in air circulation. 

A group of 92 lawyers and 11 law students associated to IDDD provided free legal aid to 448 people, between April 2020 and January 2021, resulting on the freedom of 118 people. “The results of this prison task force are worrying. The judiciary, which sought to protect its members and did not carry out a series of in-person procedures and procedural acts, shied away from its responsibility for preserving the lives of people in State custody. And this is documented not only by the report, but also in the content of their sentences”, observes the criminal lawyer Hugo Leonardo, president of IDDD. 

Leonardo refers to decisions such as the one-handed down by a Court in Embu das Artes, SP, in May 2020, denying freedom for a 21-year-old youth, accused of trafficking, and imprisoned at the Centro de Detenção Provisória II (CDPII) in Osasco. “In the midst of the public health crisis we are experiencing, the agent’s release could represent a risk to his health, considering we have no news of infected prisoners in the agent’s prison (sic),” said the judge. At the time, the unit had a contagion rate of more than 25%, that is, approximately eight times higher than the rate of the municipality where the CDP is located. 

Denial in the Judiciary 

The number also show that, although 100% of the lawyers’ requests were based on recommendation No. 62 – and, therefore, the health emergency -, in more than half (52.5%) of the releases the pandemic was not even mentioned by judges.  

“If the judges found the imprisonment unnecessary for reasons that were not related to the pandemic, then we need to ask why they were imprisoned in the first place”, asks Vivian Peres, project officer of IDDD. She highlights that it is the role of the Judiciary to be aware of the procedural situation of people in prison and recall article 316 of the Code of Criminal Procedure, which determines that judges must periodically review the prisons they determine. 

When analyzing the decisions that maintained the imprisonment situation, IDDD identified that 39% (81) of them explicitly referred to recommendation No. 62, what suggests that judges mentioned the orientation much more to delegitimize it than to reinforce its character as a measure of protection of life and health. 

“Given that the mention rate of the CNJ document in the favorable sentences was 28% against 39% in the negative ones, we concluded that recommendation No. 62 was more used by magistrates to deny than to grant freedom. The orientation was emptied by a denial attitude that puts the lives of people in prisons at risk”, concludes Peres. 

If in March 2020, before the first death by Covid-19 in a Brazilian prison, CNJ recommendation No. 62 signaled the agency’s concern with the life and health of incarcerated people, practice has shown that the orientation has not reached its humanitarian purpose. 

“This IDDD diagnosis raises questions about the Judiciary’s responsibility for preventable deaths during this calamity. It is a document that brings strong indications of violations of law and fundamental rights by the authorities”, concludes president of IDDD, Hugo Leonardo. 

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