Artigo de Hugo Leonardo, vice-presidente do IDDD. Publicado originalmente no JOTA.
Mudanças procedimentais não foram capazes de tornar nosso país mais civilizado em matéria processual penal e penitenciária.
Adriana* já era mãe de dois filhos quando descobriu que estava grávida. Poucos dias antes do parto, desempregada, vendo os filhos com fome e desesperada, junto com uma amiga, foi a um supermercado na Grande São Paulo. Ali furtaram algumas peças de queijo, dois potes de requeijão, uma caixa de facas e dois pedaços de carne.
Observadas pelas câmeras de segurança, Adriana e a amiga foram abordadas e detidas. Terminaram presas preventivamente.
O Delegado de Polícia, não obstante o tamanho da barriga de Adriana, grávida de 9 meses, e a iminência do parto, ignorou a possibilidade de aplicação de fiança.
Tudo isso apesar de se tratar de furto simples e ter ocorrido em sua forma tentada, o que inexoravelmente acarretaria uma pena, se condenada, diferente da privação da liberdade. Ademais, verifica-se hipótese de crime impossível, o que a isentaria de processo e pena, evidentemente se o sistema de justiça criminal operasse de acordo com os princípios, a lei e a Constituição Federal.
Adriana e a amiga foram, então, levadas ao Fórum para que fossem submetidas à audiência de custódia, isto é, a apresentação das presas em juízo em até 24 horas.
Na realização do referido ato, cabe à autoridade judicial analisar a legalidade da prisão, por exemplo, aferindo-se a conduta policial no momento do aprisionamento e a necessidade ou não de sua manutenção, com a decretação da prisão preventiva ou a aplicação de medida alternativa à constrição corporal.
Desde que foram implantadas, as audiências de custódia foram objeto de ataques por determinados grupos políticos, bem como por alguns setores das Polícias, do Ministério Público e, até mesmo, do próprio Judiciário.
Sustentam, por exemplo, a possibilidade de relativização do instituto por meio da utilização de videoconferência ou do alargamento do prazo para apresentação do preso.
Ora, a hipotética possibilidade de utilização de videoconferência violaria frontalmente a norma internacional, que é expressa no sentido de que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz”. As audiências virtuais, na “ausência” da autoridade judicial, não possibilitariam o contato face a face do custodiado com aquele que decidirá acerca da manutenção da prisão. Ademais, o encarcerado não se sentiria seguro a denunciar ações arbitrárias ao prestar depoimento no local em que se encontra detido.
Portanto, a realização da audiência de custódia por videoconferência é pressuposto absolutamente inviável e que afasta caráter primordial do instituto, qual seja o de coibir excessos no momento da prisão.
Outrossim, tampouco há de se cogitar eventual necessidade de alargamento no prazo de apresentação do detido, principalmente em razão de a esmagadora maioria da população carcerária pertencer aos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, ou seja, grandes centros urbanos, locais em que tal prática já existe. As prisões efetuadas em locais que demandariam um prazo superior a 24 horas para a condução do preso à autoridade judicial representam um número ínfimo, de modo que não se pode cogitar o estabelecimento da exceção como regra, flexibilizando-se o prazo para apresentação do custodiado.
Nota-se, com isso, que não se trata de instituto despiciendo ou inviável, mas sim de providência essencial. É disso que se trata.
Na história que inicia o presente texto, Adriana e a amiga foram, de fato, levadas à presença de um juiz. Contudo, em decorrência de antecedentes criminais, a despeito de sua condição pessoal e apesar do quanto estabelecido no art. 318, incisos IV e V, do Código de Processo Penal, a prisão preventiva de Adriana foi decretada.
Na audiência, o Magistrado salientou o fato de que a gestação de Adriana “não teria gerado qualquer preocupação no momento da prática criminosa”. Adriana foi mantida encarcerada por quase 30 dias. Nesse período, sua filha nasceu presa e lá permaneceu por 30 dias. Trinta dias presa, logo após o nascimento! Justamente, em um país que, a duras penas, promulgou a Lei da Primeira Infância que veda a manutenção de mães presas com seus filhos nessas condições.
A audiência de custódia, filtro de racionalidade da porta de entrada do cárcere, poderia ter evitado a gravíssima situação imposta a Adriana. Mas nem esse instituto foi suficiente para superar a cultura punitivista instaurada na sociedade. Nem mesmo a presença física de uma mulher presa com gestação de 9 meses foi capaz de fazer com que a lei fosse cumprida.
O instituto, que já possui mandamento normativo desde 1992, quando, por meio do Decreto nº 678, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos foi ratificada e passou a vigorar com plena eficácia, foi implementado com mais de 25 anos de atraso. E isso só foi possível pela extrema boa vontade e firme ação política do Conselho Nacional de Justiça, na gestão do ministro Ricardo Lewandowski.
Mas, infelizmente, mudanças procedimentais não foram capazes ainda de tornar o nosso país um pouco mais civilizado em matéria processual penal e penitenciária.
Esse pequeno artigo traz, como exemplo, algumas desumanidades sintomáticas na descrição do caso de Adriana: desrespeito à lei, à Constituição e a princípios que regem o direito brasileiro. Mas, a mais importante não é uma desumanidade propriamente jurídica. Trata-se de uma doença social motivada pelo ódio. Uma cultura demasiadamente perversa capaz de produzir muito sofrimento.
Esse pensamento pernicioso, que habita os gabinetes do sistema de justiça criminal do país, demonstra o enorme desafio para a implementação de uma justiça minimamente legítima. E a gravidade da situação imposta a Adriana evidencia que, para além da relevância da audiência de custódia e da necessidade de se manter o instituto como instrumento a garantir direitos, em cumprimento a um Tratado internacional do qual o Brasil é signatário, é urgente e imprescindível a alteração dessa agenda punitivista, que impede o respeito ao ordenamento jurídico existente no país e estimula o tratamento desumano e cruel a determinado extrato social distinto daquele historicamente formado pelas classes que forjaram o funcionalismo público do Brasil.
A história de Adriana reforça a necessidade de se assegurar, no sistema penal, a existência de institutos que efetivem o quanto já estabelecido na lei penal, processual penal e na Constituição Federal. Medidas que permitirão fazer cessar situações gravíssimas e evitar o aumento do sofrimento inerente ao Processo Penal.
Ah, a propósito. Após o Supremo Tribunal Federal dizer que conduções coercitivas podem ocorrer tão somente nos termos previstos do Código de Processo Penal, a Justiça Criminal, e inclusive ministro do STF, tratou de resolver mais essa questão. Passou a prender cautelarmente aqueles que, no passado, nem deveriam ter sido conduzidos. Mas isso não importa. Trata-se apenas de outra hipótese de desmando a alimentar a engrenagem da máquina de moer carne.