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Jovem negro é absolvido pelo STJ depois de falso reconhecimento por foto

Homem de 27 anos teve foto incluída em “álbum de suspeitos” e já foi acusado injustamente ao menos 8 vezes

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em mais uma decisão histórica, absolveu hoje Tiago Vianna Gomes, 27, condenado em 2ª instância, sob acusação de roubo de uma motocicleta, em 2017, após falso reconhecimento em delegacia. O habeas corpus foi impetrado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro contra recurso do Ministério Público que contestou a absolvição em primeira instância. 

Cumprindo atualmente prisão domiciliar, Tiago foi reconhecido pela oitava vez por uma vítima de roubo. Segundo a testemunha, entre as características do autor do crime, estariam a pele “morena” e ter aproximadamente 1,65 m de altura. Detalhe: Tiago tem pele retinta e 1,80 de altura. Mesmo assim, a decisão condenatória da 2ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro ressalta que a diferença de 15 cm de estatura “não é assim tão grande”.

Na absolvição, o ministro relator do caso, Sebastião Reis Júnior, além da falta de semelhança entre Tiago e o verdadeiro suspeito,  destacou que na hora do reconhecimento em juízo, o jovem foi apresentado ao lado de outras duas pessoas com tonalidades de pele diferentes – o que pode ter comprometido decisivamente o procedimento. A decisão consolida ainda mais o entendimento de que o reconhecimento não pode ser a única prova para a condenação. Reis Júnior fez menção à decisão de outubro do ministro Rogerio Schietti Cruz no mesmo sentido, rejeitando uma condenação baseada apenas em reconhecimento fotográfico.

Tiago foi absolvido em primeira instância em oito processos baseados apenas no reconhecimento, incluindo este. Tendo ingressado com pedido de participação no julgamento como amigo da corte (amicus curiae), o IDDD contesta a razão de a foto ter sido apresentada para reconhecimento, uma vez que as características de Tiago não coincidiam com aquelas descritas pela vítima como sendo as do suspeito. 

O instituto também questiona quando e por que a foto do acusado foi parar num álbum de suspeitos e lá foi mantida, mesmo com todas as absolvições anteriores. No histórico do caso, Tiago chegou a ser reconhecido até quando sua imagem foi incluída no álbum de suspeitos como “dublê” (pessoa que, caso seja selecionada, não experimenta consequência jurídica já que não há possibilidade de que tenha envolvimento com o fato investigado).

A diferença de altura do suspeito apontado pela vítima e o acusado, Tiago Vianna Gomes, condenado em 2ª instância, é a mesma entre “O Baixinho”, Romário e Ronaldo “Fenômeno”

No pedido de habeas corpus, a Defensoria do Rio lembra que a Justiça tem chancelado uma série de prisões ilegais em que a única prova é de reconhecimento. São casos como os do DJ Leonardo Nascimento – que também é negro -, acusado erroneamente de latrocínio e preso em janeiro de 2019, tendo sido reconhecido pessoalmente por quatro diferentes testemunhas, quando comparado com duas pessoas brancas. Somente após a prisão de um comparsa do verdadeiro criminoso, o DJ teve a inocência comprovada. 

Outro caso recente, com semelhança ainda maior, é o do violoncelista Luiz Carlos Justino, preso em setembro passado, por roubo com arma de fogo, após reconhecimento por foto. Sem qualquer passagem pelo sistema prisional, a imagem de Justino constava nos arquivos da polícia civil e foi apresentada a testemunhas ainda que não houvesse qualquer investigação prévia – o que bastou para a detenção.

“Assim como os demais, o caso de Tiago mostra que o sistema de justiça não tem se esforçado para corrigir erros decorrentes de processos baseados em provas tão frágeis quanto as de reconhecimento. Para evitar esse tipo de equívoco catastrófico, tanto para quem é acusado quanto para as garantias individuais, bastava simplesmente seguir o que a lei já determina”, observa o diretor de litígio estratégico do IDDD, o criminalista Guilherme Carnelós.

O advogado se refere ao artigo 226 do Código de Processo Penal, que indica que o reconhecimento deve ser feito alinhando pessoas que tenham semelhanças com o suspeito, após a testemunha já tê-lo descrito. O álbum de suspeitos, por exemplo, não está regulado pela lei brasileira atualmente, se encontrando num verdadeiro limbo normativo. 

Especialistas defendem que, embora longe do ideal, o artigo 226 estabelece diretrizes mínimas que não têm sido respeitadas, nem pela polícia e nem pela Justiça. Além disso, incide também sobre o reconhecimento, o problema das chamadas “falsas memórias”.

“A memória não é como uma filmadora, que registra e mantém intactos os fatos, esperando somente o sistema de justiça”, afirma a professora de Direito Probatório  e consultora do projeto Prova sob Suspeita, do IDDD, Janaína Matida. Ela também lembra que relatos podem ser falsos apesar da sinceridade das testemunhas: “Toda vez que a memória é acessada, ela está sujeita a ser modificada de forma que fica impossível ter acesso ao original. Assim, tanto o testemunho quanto o reconhecimento devem ter seu valor como prova considerado à luz das limitações que apresentam”, diz.

Outros fatores também pesam no comprometimento do reconhecimento, como o racismo estrutural, que, dentre outras consequências, resulta no chamado “efeito de outra raça”, o qual faz com que adultos reconheçam pessoas do próprio grupo racial com mais precisão do que indivíduos de outras raças. Nos EUA, uma pesquisa que analisou 250 processos de revisão criminal em que o DNA acabou inocentando acusados, em 190 casos de erros judiciários por reconhecimento pessoal falho, 93 (49%) decorriam de reconhecimento feito por pessoas de raças distintas das apontadas como suspeitas.

Hoje no Brasil, nada sobre a fragilidade das provas de reconhecimento é levado em conta num julgamento. A começar pelo fato de que o próprio álbum de suspeitos é hoje um catálogo de pessoas categorizadas pelo Estado como passíveis de desconfiança. Muitos vão parar ali sem que haja qualquer investigação, sem que o fotografado possa requerer a retirada de sua imagem, caracterizando uma verdadeira presunção de culpa (de jovens homens negros na maioria das vezes).  

Acesse o pedido de ingresso como amicus curiae do IDDD aqui

Acesse o Habeas Corpus da Defensoria do Rio de Janeiro aqui.