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IDDD promove Oficina “Pena de multa, sentenças de exclusão: desafios e estratégias para a garantia de direitos de sobreviventes do cárcere”

Evento reúne profissionais de diversos estados para ampliar a discussão sobre as consequências da aplicação dessa multa na vida pós-cárcere e definir estratégias coletivas para atuar na questão

Em 2022, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) iniciou um projeto para dar visibilidade aos efeitos da multa penal na vida das pessoas sobreviventes do cárcere: entre agosto e dezembro de 2022, fez o primeiro mutirão de atendimento jurídico para lidar com essa dívida; desenvolveu o material de apoio sobre o tema para ser usado por advogados e advogadas envolvidos nos casos e apresenta pela primeira vez dados recolhidos sobre o perfil desses atendimentos. 

No dia 18 de agosto, a oficina “Pena de Multa, sentenças de exclusão: caminhos e estratégias para a garantia de direitos de sobreviventes do cárcere”, organizada pelo IDDD, dá continuidade aos esforços para lançar luz sobre o tema. O evento é fechado para convidados e inscritos previamente e conta com a participação de Defensores Públicos, representantes da sociedade civil, juízes, entidades como a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

A pena de multa está prevista no ordenamento jurídico e consiste em uma sanção penal financeira, que é aplicada individualmente ou acompanhando a pena de privação de liberdade ou de restrição de direitos. Ou seja, além de passar o tempo determinado em prisões, a pessoa ainda precisa arcar com o pagamento de uma dívida aplicada pelo Estado.

Os valores cobrados variam a depender do tipo de crime cometido. Esse valor é calculado pelo juiz em duas partes: primeiro ele decide quantos dias-multa serão aplicados (no Código Penal, o mínimo é de 10 dias-multa e o máximo, 360, mas na legislação de drogas, por exemplo, a variação é de 500 a 1.500 dias-multa); depois define um valor para cada dia-multa (o cálculo pode variar de 1/30 do salário mínimo vigente na época do crime até cinco vezes o valor desse salário mínimo). Para se chegar ao montante final a ser pago, os dias-multa são multiplicados pelo valor estabelecido.

Pesquisa

O primeiro mutirão jurídico feito pelo IDDD com entidades parceiras assistiu 241 sobreviventes do cárcere. Os dados levantados sobre o perfil das pessoas assistidas, coletados entre agosto e dezembro de 2022, mostram:

  • 79,7% das pessoas assistidas se autodeclararam negras (pretas ou pardas);
  • 71,4% das pessoas assistidas relataram terem filhos e/ou outros dependentes;
  • quase 1/5 (18,7%) das pessoas assistidas declararam estar em situação de rua no momento do atendimento;
  • 72,2% das pessoas assistidas declararam ganhar até R$ 1.200,00 mensais;
  • 59,3% das pessoas assistidas declararam estar desempregadas;
  • Das 84 pessoas assistidas que afirmaram não estarem desempregadas, 82,1% relataram não estarem registradas.
  • Entre as 64 mulheres atendidas, 33 são solteiras e tem filhos e/ou outros dependentes.

“Os dados confirmam mais uma vez que a multa penal é um sistema legalizado de discriminação que impõe obstáculos, muitas vezes instransponíveis, no caminho da vida civil de pessoas que já passaram por uma condenação penal. Hoje, por exemplo, para uma pessoa condenada pelo crime de tráfico de drogas, independentemente da quantidade apreendida, o valor mínimo da pena de multa é de mais de R$ 20 mil. Considerando o perfil das pessoas geralmente condenadas por esse crime – negros, jovens, de baixa escolaridade e renda – a situação é ainda mais delicada”, afirma Vivian Peres, Coordenadora de Programas do IDDD.

Até agora, o mutirão teve 36 decisões judiciais favoráveis, nas quais foi extinta a punibilidade das penas aplicadas às pessoas assistidas – seja pelo reconhecimento da impossibilidade de pagamento, ou pelo reconhecimento da prescrição da pena de multa.

Oficina

A programação da oficina traz entidades e profissionais do poder público e da sociedade civil de vários estados para discutir os impactos dessa cobrança; identificar os desafios; construir repertório conjunto e definir estratégias para atuar de forma coletiva. Serão três mesas temáticas, cinco grupos de trabalho e encaminhamentos para ações conjuntas futuras.

Nesse dia, a Alma Preta, agência de jornalismo especializada na temática racial, também apresenta a campanha institucional com depoimentos e histórias de quem deixou o sistema prisional com a pendência do pagamento da multa, atendidos no mutirão.

“A oficina tem a finalidade de avançar na articulação da sociedade civil com o Poder Público em torno do tema da pena de multa e também encaminhar ações a serem executadas coletivamente, levando em consideração as diferentes frentes de atuação das organizações e demais atores envolvidos na problemática. A partir da identificação dos problemas em torno da pena de multa, o objetivo do evento é organizar ações para superá-los”, afirma Marina Dias, Diretora-executiva do IDDD.

Pena de multa no país

Essa sanção frequentemente prevista de forma cumulativa com a privação de liberdade até há poucos anos não fazia parte do dia a dia da execução penal brasileira.

O Superior Tribunal de Justiça havia fixado duas orientações, que afastavam o tema do âmbito da execução penal: a execução da pena de multa era um assunto de natureza fiscal, e não criminal; a extinção do processo de execução penal não dependia do pagamento da multa, bastando o resgate da pena privativa de liberdade.

No caso de uma condenação à pena de multa, o juízo da execução penal se limitava a informar à Fazenda Pública a respeito da pena de multa aplicada. A Fazenda Pública, por sua vez, deixava de executar a grande maioria das penas de multa informadas pelos juízes e juízas criminais, pois não havia interesse econômico-financeiro no ajuizamento das ações, que frequentemente possuíam valores abaixo do mínimo previsto em leis estaduais para sua execução.

O endurecimento da legislação penal e de sua interpretação pelos Tribunais nos últimos anos, causado pelas orientações firmadas a partir dos casos “Mensalão” e “Lava-Jato”, foi sentido em diversas frentes e com a pena de multa não foi diferente.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 3.150 e fixou o entendimento de que cabia ao Ministério Público a atribuição primária para execução da pena de multa e a competência do juízo da execução penal para processar e julgar os pedidos de execução, cabendo à Fazenda Pública um papel apenas subsidiário na cobrança dos valores.

Posteriormente, foi promovida alteração no art. 51 do Código Penal pela Lei n.º 13.964/2019 (conhecida como “Pacote Anticrime”), projeto de autoria do então Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Ficou estabelecido no texto que a multa deve ser executada exclusivamente junto à Vara de Execução Penal e por iniciativa exclusiva do MP.

Por fim, diante do resultado da ADI 3.150 no Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça revogou o entendimento firmado no Tema 931 e passou a julgar que o não pagamento da pena de multa não extinguia a punibilidade da pessoa condenada.

A partir de então, se a pessoa não consegue pagar a dívida é como se não tivesse cumprido toda a pena. “Enquanto o débito não é pago, a pena não é considerada cumprida e os direitos políticos seguem suspensos. Muito frequentemente os valores são impagáveis, sobretudo, para alguém que está tentando reconstruir a vida após sobreviver ao cárcere”, afirma Marina Dias.

Sem certidão de quitação das obrigações eleitorais, a pessoa não consegue exercer direitos básicos de cidadania: não pode regularizar seu CPF e, consequentemente, não tem como acessar programas assistenciais do governo; não pode se matricular em instituições de ensino superior; tomar posse em serviço público; abrir conta no banco; manter cobrança de serviços como fornecimento de energia elétrica em seu nome, o que acarreta dificuldades na comprovação de residência fixa; entre outras formalidades que são porta de entrada para direitos garantidos aos brasileiros. “Uma verdadeira reação em cascata que empurra a pessoa para uma condição de subcidadania sacramentada pelo próprio Estado”, diz Marina.

O entendimento foi modulado em 25/11/2021 para ressalvar que a extinção seria possível para a pessoa condenada que comprovasse a impossibilidade de pagamento da pena de multa.

Situação nos estados – Em São Paulo, o Tribunal de Justiça editou regramento próprio para disciplinar a forma de processamento da execução da pena de multa, visando criar uma rotina de trabalho para Magistrados(as) e servidores(as), assim como ao Ministério Público de São Paulo.

“Passamos de um cenário em que a pena de multa raramente era executada e não impedia a extinção do processo de execução criminal para o oposto: a pena de multa será executada em todos os casos e impedirá a declaração de extinção da pena das pessoas condenadas até ser paga ou até que se demonstre que seu pagamento é impossível”, finaliza Vivian Peres.

Confira a programação completa da oficina aqui.