“Direito sob Custódia: Uma década de audiências de custódia e o futuro da política pública de controle da prisão e prevenção da tortura”

15 de dezembro de 2025
Estudo do IDDD e da APT aponta que a virtualização reduz eficácia das audiências de custódia e fragiliza combate à violência policial

As audiências de custódia realizadas por videoconferência apresentam pior qualidade e menor capacidade de proteção de direitos quando comparadas às presenciais. É o que revela a pesquisa “Direito sob Custódia: Uma década de audiências de custódia e o futuro da política pública de controle da prisão e prevenção da tortura”, produzida pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) com apoio da Associação para a Prevenção da Tortura (APT).

O estudo oferece um retrato amplo e atualizado da política, criada há dez anos, e evidencia que a virtualização das sessões, intensificada durante a pandemia, agravou problemas estruturais e fragilizou a função essencial das audiências: verificar a necessidade e legalidade das prisões, coibir abusos e prevenir a violência policial.

Entre setembro e dezembro de 2024, foram acompanhadas 1.206 audiências em dez cidades de seis estados (Acre, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Paraná e São Paulo), cobrindo todas as regiões do país. O levantamento, feito em parceria com universidades e pesquisadores, indica que avanços normativos não se traduzem automaticamente em práticas adequadas, e que a efetivação desses marcos depende de maiores esforços de implementação por parte do poder público.

A análise dos dados mostra que o respeito aos direitos da pessoa custodiada foi 17,5% maior nas audiências presenciais. O índice levou em conta a condução da sessão pelo juiz, incluindo se ele explicitou o objetivo da audiência para a pessoa custodiada e o seu resultado, e se a alertou sobre o direito ao silêncio.

Apesar disso, a modalidade virtual segue predominante. Dados da plataforma Observa Custódia, desenvolvida pela APT, mostram que, em 2024, apenas 26% das audiências foram presenciais; outras 34% ocorreram por videoconferência, e 40% alternaram entre os dois formatos.

Além de mais frequentes, as sessões virtuais acontecem majoritariamente em locais inadequados: só 26% delas foram feitas a partir de uma sede judicial, como determina a Resolução nº 213/2015 do CNJ. O restante ocorreu dentro de lugares como delegacias, presídios e cadeias.

A presença física da defesa também é exceção: apenas 26,2% das pessoas custodiadas contaram com advogado ou defensor público ao seu lado nas audiências virtuais. Em 37,5% dos casos, elas ainda apareciam cercadas por policiais durante a sessão, o que inibe denúncias de agressões.

Quando o juiz está presente no mesmo ambiente da pessoa custodiada, sua condução da audiência é considerada 25,3% mais efetiva para investigar denúncias de violências, o que inclui registrar sinais visíveis de tortura e buscar testemunhas.

 

Violência policial

Do total analisado, 19,3% das pessoas relataram tortura, maus-tratos ou agressões. Salvador (35,3%) e Betim (31,4%) apresentaram as maiores taxas.

Apesar da gravidade, entre as 27 decisões que relaxaram prisões, apenas uma mencionou violência policial como justificativa, indicando que o Judiciário raramente considera esses relatos como fator suficiente para reconhecer a ilegalidade da prisão.

“As audiências de custódia constituem uma salvaguarda única e decisiva para identificar indícios de tortura e maus-tratos”, destaca Sylvia Dias, representante da APT no Brasil. “O fato de quase um quarto das pessoas detidas relatar agressões ou maus-tratos revela um cenário alarmante que exige medidas imediatas de apuração e, quando houver indícios de violência policial, o relaxamento da prisão. Contudo, a naturalização da violência policial e o descrédito da palavra da pessoa custodiada continuam prevalecendo”.

 

Raça e gênero

O estudo confirma o impacto do racismo institucional na rotina das audiências. Entre pessoas negras que denunciaram violência, 27,9% não tiveram qualquer encaminhamento judicial para apuração, contra 17,8% entre pessoas brancas. A diferença revela que os relatos de pessoas negras tiveram menor probabilidade de gerar respostas institucionais, mesmo quando as denúncias são formalizadas.

Na análise de gênero, a pesquisa mostra que, mesmo quando mulheres têm filhos menores de 12 anos, hipótese que autoriza a substituição da prisão preventiva por domiciliar, segundo o Marco Legal da Primeira Infância, a taxa de encarceramento praticamente não muda: 28,9% entre mães e 29,3% entre as demais mulheres.

 

Medidas cautelares

O levantamento confirma uma tendência já apontada pelo IDDD em 2019, no estudo “O Fim da Liberdade”, então o maior diagnóstico nacional sobre audiências de custódia, com mais de 2,7 mil sessões monitoradas. Naquele momento, a organização já havia identificado que a aplicação de medidas cautelares vinha se tornando uma prática quase automática nos casos em que a liberdade era concedida.

A pesquisa atual mostra que esse cenário persiste. Entre as audiências decorrentes de prisão em flagrante, 52% resultaram em liberdade provisória acompanhada de uma ou mais cautelares. As mais frequentes são: comparecimento periódico em juízo (83,1%), proibição de deixar a comarca (51,7%), restrição de acesso a determinados locais (27,8%), monitoração eletrônica (20,7%) e recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga (18,9%).

A adoção tão ampla dessas medidas contrasta com o baixíssimo índice de liberdade provisória plena (apenas 1% dos casos) e com o número reduzido de relaxamentos de prisão por ilegalidade (2,7%). Já 45,2% das pessoas foram encaminhadas à prisão provisória e 0,4% à prisão domiciliar.

Apesar do uso intensivo de cautelares e do índice significativo de prisão preventiva, as audiências de custódia tiveram impacto positivo na redução das prisões provisórias ao longo da última década. Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, antes da implementação das audiências, em 2014, 41% das pessoas presas no Brasil aguardavam julgamento. Em 2025, esse número caiu para 28%.

A repetição do padrão já observado em 2019 e reafirmado pelo novo levantamento evidencia que, embora as audiências tenham desempenhado papel importante na diminuição das prisões provisórias, o uso automático de cautelares reforça a adoção excessiva de medidas restritivas.

 

Normativas

Apesar do acúmulo de normas e boas práticas produzidas ao longo da década, o estudo aponta que a distância entre o que está previsto e o que acontece na prática segue grande. Ainda assim, novos projetos legislativos caminham no sentido de enfraquecer a política.

No último dia 27 de novembro, entrou em vigor a Lei nº 15.272/2025, que altera o regramento das audiências, possibilitando a decretação quase automática de prisões preventivas.

Outros retrocessos seguem tramitando no Congresso. O chamado PL Antifacção (PL 5582/2025), relatado e alterado na Câmara pelo deputado federal e ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite (PP), prevê a alteração do formato das audiências, para que passem a ser realizadas obrigatoriamente por videoconferência. Atualmente, o texto tramita no Senado sob relatoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE) que, em seu último relatório, apresentado no dia 3/12, alterou o texto para que essas audiências passem a acontecer preferencialmente por vídeo.

 

Recomendações

Para Vivian Peres, coordenadora de programas do IDDD e responsável pelo estudo, os resultados deixam claro que o desafio das audiências de custódia não está na ausência de regras, mas na distância entre o que está previsto em lei, os protocolos de boas práticas, e o que acontece diariamente nas salas de audiência.

“Os dados demonstram que, em todo o país, o problema não é falta de legislação, regulamentações ou manuais orientativos, mas o descumprimento sistemático das normas já existentes. Em dez anos, houve avanços importantes na regulamentação das audiências de custódia. Se essas regras fossem efetivamente cumpridas e as recomendações implementadas, teríamos um instrumento ainda mais robusto para evitar prisões ilegais e prevenir a violência policial”, afirma Peres.

O presidente do IDDD, Guilherme Carnelós, destaca que o momento legislativo vai na contramão da efetividade da política: “Enquanto o Congresso aprova medidas populistas que restringem as audiências de custódia, como a nova lei sancionada no final de novembro, o que realmente precisamos é garantir que a presença física volte a ser a regra, que o prazo de 24 horas seja cumprido e que todo relato de violência seja registrado, encaminhado e devidamente apurado. Só assim será possível reduzir a distância entre a norma e a prática.”

No marco de uma década dessa política pública – uma das mais importantes conquistas na garantia de direitos na esfera da justiça criminal dos últimos anos -, o estudo mostra que tornar as audiências de custódia plenamente efetivas depende menos da criação de novas leis e mais do compromisso do Estado em implementar e fiscalizar as normas já existentes, especialmente as regras e manuais do CNJ que estabelecem parâmetros para sua realização. Em um contexto de violência policial persistente, encarceramento em alta e crescente virtualização das sessões, esse compromisso é decisivo.

 

Sobre a pesquisa

O estudo foi viabilizado pelo Consórcio Unidos Contra a Tortura (United Against Torture Consortium), implementado pela APT, com apoio financeiro da União Europeia, da Embaixada do Reino dos Países Baixos no Brasil e do Cantão de Basileia (Suíça). O conteúdo é de responsabilidade exclusiva do IDDD e não pode ser interpretado como refletindo a posição da União Europeia, Reino dos Países Baixos e Cantão da Basileia (Suíça).

 

Acesse o relatório completo aqui.

Confira o painel interativo com os dados da pesquisa abaixo

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