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Tempos difíceis para os sonhadores

       Francisco de Paula Bernardes Jr.
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal na FAAP

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 9 de setembro de 2015.

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O artigo que ora trago à consideração do ilustre leitor me parece não vir dizer o desejado.

É que o escrevo com tom de crítica em meio ao momento histórico de combate à corrupção mais importante dos últimos tempos. Não tenho conhecimento de outra passagem dessa jovem república ante a qual se tenha tido tamanho empenho em se desvendar e perseguir o velho assalto aos cofres públicos.

Gente graúda tem conhecido o lado escuro de nossa realidade social, permanecendo presa por longos períodos antes de condenação passada em julgado, como se fizesse parte da imensa camada de miseráveis já acostumados a tal realidade, às agruras do cárcere.

Antes que digam que o articulista é contra a persecução de crimes e mesmo deixem de ler este texto publicado neste valoroso site, sou obrigado a dizer que essa cruzada contra a corrupção é, em certa medida, positiva ao país e têm componentes importantes de consciência e evolução sociais.

Mas, afinal, onde é que está a referida crítica objeto do presente artigo?

Respondo. Na perigosa e antidemocrática onda de desamor às liberdades individuais que se instalou no país.

Não é preciso lupa para verificarmos que estamos caminhando a todo vapor com o crescimento de um dos mais ameaçadores movimentos de antipatia às liberdades públicas que já se pôde constatar desde o fim da ditadura militar.

O povo, que, digamos lá, nunca teve grande sensibilidade acerca da importância social das garantias constitucionais protetoras dos acusados, vem ganhando cada vez mais adeptos para entoar o mantra da eficiência penal a todo custo.

O que chama atenção e nos faz arrepiar, é que nesta vereda podemos identificar parlamentares – outros que não os velhos cruzados a favor do punitivismo –, jornalistas, empresários, profissionais liberais e até mesmo enorme parcela de advogados. Pessoas em tese “esclarecidas” que até então não haviam tomado partido em prol do atropelo de direitos e garantias individuais, do encurtamento do devido processo legal.

Quanto aos advogados, cabe aqui uma reflexão. O silêncio de grande parte da classe, acerca do desrespeito à lei para se punir, é eloquente. Percebe-se uma prazerosa indiferença em relação às investidas que se tem visto, a torto e a direito, especialmente contra o direito de defesa.

Em sua maioria, são os advogados que se calam aqueles não afeitos a defender clientes em processos criminais. Mas isso não os retira o fardo da responsabilidade de calados, legitimarem um estado de coisas que coloca em risco a democracia e o Estado de Direito, que a mesma classe tão duramente lutou para concretizar.

Para ser preciso, aponto a gravidade das prisões para extração de delação, a ilegal tentativa de se colocar defensores ao lado de seus constituintes como investigados, de se exigir explicação sobre a origem de honorários licitamente recebidos ou, mesmo em grau legislativo, o absurdo pacote de projetos de lei em andamento contrário à ampla defesa e ao devido processo penal.
A pulsão por punição ganhou ares de epidemia.

Isso se verifica em decorrência do aplauso e regozijo social quando prisões são decretadas e mantidas. Esse desejo de ver prender, como já bem nos explicou a psicanálise, revela que por intermédio da prisão a sociedade se purifica e se livra de todos os seus males.

Punindo o outro, rotulando-o de criminoso, asseguramos nossa inocência.

Esse interessante fenômeno da psique humana, intimamente ligado ao inconsciente, transforma o acusado de crime em verdadeiro bode expiatório, fato que, nos dias atuais, carrega uma carga ainda maior, pois aliado ao desejo de concentrar nos acusados de corrupção toda a culpa pelo atraso do país.

Tais acusados de crimes contra a administração pública e lavagem de capitais, arrisco dizer, estão sofrendo uma carga social acusatória que leva em conta os séculos de subdesenvolvimento que estamos inseridos.

Afinal, nunca é demais lembrar o gênio de Nelson Rodrigues, quando afirmou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.

Permito-me fazer aqui o alerta, que para não dizer que é novo, o extraio das palavras que Nietsche inseriu em uma de suas grandes obras, “Assim falou Zaratustra”, antecipando o que mais tarde seria um dos pilares da psicanálise freudiana, sentenciando: “Desconfiai de todos em que o impulso de castigar é poderoso!”.

Independentemente destas curiosas questões psicanalíticas, o ponto de crítica, retorno, é a perda do desejo social por liberdade.

Pois é patente que se depositou a perspectiva de transformação do país no martelo condenatório de um juiz criminal. Acreditando-se que, com tais prisões e condenações, se extirpará do país o venenoso patrimonialismo que tanto nos assola.

Tamanha é a expectativa de melhorias sociais por meio de condenações, que a sociedade erigiu um juiz criminal à condição de herói da nação. Ressalto que a crítica não é dirigida ao juiz, que se trata de profissional sério. Nem sequer analiso o acerto ou desacerto de suas decisões, em que pese à crítica a alguns métodos utilizados, a meu ver, claramente ilegais. A frase de Brecht – “triste da nação que precisa de heróis” – nunca esteve tão atual.

Esse fenômeno social de legitimação de um sistema penal cada vez mais amplo e punitivo, tenta encobrir a verdadeira matriz liberal que fundou nossa vigente Carta da República, instituída sob os auspícios das ideias individualistas e liberais acerca dos direitos fundamentais.

Não é preciso de grande esforço para se extrair que o sistema penal, da forma como preconizado pela atual Constituição Federal, deve ser visto como instrumento de garantia do cidadão contra os corriqueiros arbítrios do poder público em sua necessidade de se garantir um mínimo de segurança, e não como ferramenta a serviço de pretenso combate à desigualdade social.

Nesse caldo punitivo maniqueísta que cresce assustadoramente, é de surpreender a verificação da existência da mais sólida aliança política entre os opostos. Quero dizer que direita e esquerda, neste prisma, andam de mãos dadas.

Até mesmo os juízes com conhecidas tradições liberais e garantistas encontram-se acuados, por vezes temendo o impacto social de suas decisões, que visem frear a ânsia punitiva.

Cada vez mais tímidos são os movimentos liberais. Os iluministas contemporâneos, pelo que parece, adormeceram.

É hora de nos levantarmos, antes que tarde, na defesa dos ideais do humanismo, de nos opormos contra o sentimento amplamente difundido de vingança social, trazendo luzes ao demonstrarmos a ineficiência da utilização do rigor penal, das proibições e do controle exacerbado, no combate às mazelas sociais.

Combatamos as falsas crenças.

São tempos difíceis para os sonhadores, diante disso está a necessidade de voltarmos a difundir o amor às liberdades.

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