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Quando o cometimento do crime é visto no espelho

Thiago Gomes Anástacio
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 30 de abril de 2016.

Na última coluna do IDDD no JOTA, o presidente Augusto de Arruda Botelho lançou uma bonita ode contra a hipocrisia existente nas camadas sociais mais abastadas do Brasil. Texto agradável e leve, sem longas incursões jurídicas. Cabendo-me esta seguinte exposição pelo Instituto falarei de um caso concreto que até hoje me espanta, não só pelo emaranhado de circunstâncias interessantes ao direito penal como pela reação do réu e dos jurados que o absolveram.

Confesso ter ficado em dúvida se exporia um caso de extradição (muito interessante por sinal), um caso de “operação da PF tocada pelo Moro” ou o que acabei escolhendo. Decidi por este porque segue a linha do primeiro artigo, quando se expôs como os olhos de muitos se fecham para alguns tipos de crimes só demonizados quando cometidos por políticos (e dos partidos contrários aos de nossa preferência); já neste caso, ocorreu um crime que os jurados entenderam que também cometeriam se estivessem na mesma situação e motivados pelas mesmas razões do réu.

Seu nome, Edson. O local do crime, uma comunidade (favela) em São Paulo. Passada quase uma década e tantos julgamentos depois, puxarei da memória os detalhes.

Edson era segurança noturno terceirizado que trabalhava em um dos mais importantes prédios do centro de São Paulo. Sua esposa era do lar, mas também líder comunitária que andava em tratativas para a realização de um casamento comunitário com o apoio da Legião da Boa Vontade (LBV); mas para a parceria ser concretizada, a LBV exigiu da liderança a participação da Polícia Militar, o que foi prontamente aceito por todas as partes que se encontraram, em salutar programa da PM, para um café da manhã no batalhão, quando foram tomadas as decisões estratégicas para o evento.

Os detalhes foram acertados e já no meio da tarde os cartazes começaram a ser divulgados para os noivos de plantão.

Muitos cartazes colados, diversas viaturas da Força Tática da Polícia Militar entraram na comunidade e prenderam o chefe “da boca”.

Chefe preso, assumiu o vice, que soube da reunião entre a liderança comunitária e a Polícia Militar. Conclusão do gênio: se a líder comunitária foi à Polícia Militar naquela manhã, orquestrou-se uma grande operação no espaço de pouquíssimas horas, com mandados e todo o restante do kit justiça, para prender o traficante mor com base naquelas informações “delatadas”!

Já era final da tarde quando o novo premier percebeu a filha do casal colando os últimos cartazes e de pistola em mãos grudou a menina na parede, lhe dizendo: “Isso aqui (a pistola) é para dar na cara do seu pai e da sua mãe até o meio-dia de amanhã. E diga para eles que depois disso, vou aproveitar você, que está bem gostosinha”. Nesse momento, ele passou o cano da pistola na vagina da menina de 14 anos, por cima da sua calça.

Assustada, a menina correu para casa e avisou sua mãe, que imediatamente foi para uma vizinha com a prole enquanto avisava pelo celular o marido/pai/réu que acabara de chegar ao seu posto de trabalho.

Não consigo descrever, agora que sou pai, a aflição passada por Edson depois que ao ligar para seu superior, recebeu um não como resposta logo depois de pedir para ser substituído. Das 6h30m da tarde até as 6h30m da manhã, Edson ficou estático (lembro-me dele ter dito isso em seu interrogatório), pensando em todo o mal que sua família poderia passar.

Rendido (ou seja, terminado seu turno) voou para casa, gastando quase metade do seu salário em um táxi.

E quando ele entrou pela rua principal da comunidade, quem ele viu de chinelos, sem camisa, com um saco de pães na mão, andando impunemente?

Sim, o novo premier.

Edson, que andava armado por ser segurança, sacou sua pistola e descarregou diversos tiros na cabeça da pobre vítima, entregando-o às mãos de Caronte.

Sumiu por dois dias e depois apresentou-se à delegacia.

Até hoje me pergunto qual filme passou pela cabeça de Edson quando avistou o cidadão-rei. A arma passando pela vagina de sua filha? O quadro macabro de toda a sua família fuzilada? Sua filha nas mãos da corte canhestra, depois que ele e sua esposa estivessem mortos?

O Ministério Público lhe pediu 14 anos de prisão e previu – erradamente – que a defesa reclamaria a diminuição da pena, por força do disposto no art. 121, §1º, ou seja, o homicídio privilegiado (sob influência de violenta emoção, após injusta provocação da vítima ou por relevante valor moral ou social).

Mas como chamar de iguais coisas tão desiguais?

Se uma esposa traída e humilhada, que seu marido no meio de uma reunião social espalhasse fotos dela, nua, buscando sua humilhação…. Se esta perdesse a cabeça e matasse o marido, num desatino, em ato incompatível com sua história de vida, cometeria um homicídio privilegiado. Seria inegável a emoção violenta (humilhação) e a conduta injusta da vítima para sua explosão. Mas a situação de Edson não era a mesma.

Ele foi humilhado e perdendo a cabeça, matou?

A dificuldade do caso repousava na seguinte questão: Edson não estava em legítima defesa (a vítima estava de costas quando foi alvejada). E a condenação por homicídio privilegiado seria um acinte.

Me assombrava a seguinte indagação: Como o Estado, constitucionalmente o provedor da segurança pública, poderia pedir a punição de um cidadão que agiu para defender sua família que, quase certamente, seria vitimada?

Alguém negaria o risco que sua família sofria? Alguém duvidaria que a ameaça seria levada a cabo? E o que Edson deveria fazer? Um Boletim de Ocorrência[i]?

Esses foram os argumentos da defesa, levados aos jurados sob o enfoque da inexigibilidade de conduta diversa, nada mais do que a negação de abrangência do direito penal para a riqueza de todas as possibilidades das condutas/motivos humanos.

Um réu que matou. Que matou sem autorização legal para fazê-lo. Mas que ninguém poderia afirmar que agiria de modo diferente.

Lida a sentença absolutória, o réu virou as costas, não cumprimentou ninguém – nem mesmo o suado e exausto advogado – apenas deu as mãos para sua mulher e filha e… partiu.

Os jurados também não cumprimentaram ninguém. E nem o promotor. Mas este, por motivos mais brejeiros.

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[i] Foi essa a conduta exigida pelo Ministério Público perante o Júri, ao mesmo tempo que afirmava ter Edson violentado o Estado de Direito e feito justiça com as próprias mãos. Não se atentou o i. promotor para a realidade da vida. O direito, pelo direito, de nada vale. O que Edson deveria ter feito? Elaborado um boletim de ocorrência e utilizado de escudo contra as balas?

 

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