Guilherme Madi Rezende
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 05 de outubro de 2016.
Ao final do dia, ao conferir o caixa, o gerente do supermercado notou que estavam faltando 500 reais. Recém promovido, quis logo mostrar a que veio e foi à delegacia onde fez lavrar um Boletim de Ocorrência por furto qualificado por abuso de confiança.
Maria, a responsável pelo caixa, passou a ser investigada. Ao ser ouvida, acompanhada de seu primo advogado, negou que tivesse pego o dinheiro, mas não soube dar maiores explicações para a diferença do caixa.
Ainda no inquérito, porque Maria não estava colaborando com as investigações, o delegado decidiu representar pela sua prisão preventiva para evitar a dissipação do dinheiro desviado.
Ouvido, o representante do Ministério Público opinou pela decretação da preventiva. Fundamentou seu entendimento na novel redação do art. 312 do CPP entendendo ser necessária a medida extrema para permitir a identificação e a localização do produto do crime. Justificou que a medida impediria que o dinheiro desviado fosse utilizado por Maria para contratar um advogado na busca pela sua impunidade e que, como bônus, a medida ainda permitiria estrangular a capacidade financeira da criminosa. Advertiu que não se tratava de impor algum tipo de prisão por dívida, ainda que por meios transversos, mas que se Maria decidisse colaborar com a Justiça e devolver o dinheiro, poderia ser-lhe concedido o benefício da liberdade provisória.
O caso fictício acima contado beira o ridículo pensará o leitor. Nenhum juiz decretará prisão preventiva em um caso assim tão pueril – ainda mais antes do oferecimento da denúncia. Tampouco um promotor terá a coragem de justificar a prisão preventiva com argumentos tão próprios dos regimes autoritários: estrangular a capacidade financeira do criminoso para evitar que ele busque sua impunidade contratando advogado!
De fato, o caso beira mesmo o ridículo. Mas não é tão diferente de tantos outros que cotidianamente aparecem na justiça criminal. É mais comum do que se pode imaginar – e era mais comum ainda, antes das audiências de custódia -, a decretação de prisões preventivas em casos ridiculamente assemelhados a este.
Fred teve decretada a sua prisão preventiva em um caso de tentativa de furto de dois pares de tênis (embora reincidente, acabou condenado a 4 meses e foi solto na sentença para recorrer em liberdade. Autos: 0004843.87.2016.8.26.0635). Edmilson teve sua prisão preventiva decretada porque não compareceu a audiência de um processo no qual era acusado de tentativa de furto de um engradado de garrafas vazias de cerveja (Autos 0101729-36.2011.8.26.0050). Alexandre teve sua prisão decretada por tentativa de furto de dois notebooks (embora reincidente foi condenado a 8 meses e solto na sentença pra recorrer em liberdade. Autos: 0001817-18.2015.8.26.0050). Estes são apenas alguns exemplos colhidos de um universo enorme de casos idênticos nos quais a prisão preventiva tem sido largamente utilizada. Servem apenas para ilustrar que, ao contrário do que dita a Constituição, a prisão preventiva não é tão excepcional assim.
Já a justificativa usada pelo promotor, por mais esdrúxula que possa parecer, é a mesma que consta na medida nona do PL 1450/16.
O PL 1450/16 é o famoso projeto de lei patrocinado pelo Ministério Público Federal que, sob a denominação de “Dez Medidas Contra a Corrupção” propõe uma grande reforma nos códigos penal e de processo penal, cuja marca principal é a supressão de direitos e garantias do cidadão.
A nona medida, denominada “Prisão Preventiva para Evitar a Dissipação do Dinheiro Desviado” prevê alteração do artigo 312 do Código de Processo Penal – que traz as hipóteses de prisão preventiva – permitindo a sua decretação:
“II – para permitir a identificação e a localização do produto e proveito do crime, ou seu equivalente, e assegurar sua devolução, ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado ou acusado, quando as medidas cautelares reais forem ineficazes ou insuficientes ou enquanto estiverem sendo implementadas”
A primeira coisa que chama a atenção é a pegadinha: o texto da proposta não corresponde exatamente ao seu título – assim, aliás, como o título do PL não corresponde ao seu conteúdo, mas é fruto de uma bela estratégia de marketing. Voltando: o título da nona medida, ao falar em dinheiro desviado, sugere aplicação específica aos casos de corrupção. Já o conteúdo deixa bem claro que a medida poderá ser usada para acusados de qualquer tipo de crime.
De todo modo, seja para investigados ou acusados de crimes de corrupção, seja de qualquer outro crime, a medida é, com todo respeito, absurda e fere o princípio da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e da garantia da não auto incriminação.
A que a nona medida pretende – e isso parece bem claro, ainda que se tente esconder – é usar a prisão para constranger a pessoa a confessar o crime e a dizer onde está o bem ou produto supostamente obtido de maneira ilícita, pressupondo, desde logo, mesmo ainda antes da denúncia, a existência do crime e a identificação do autor.
De que outra forma a prisão pode ser útil para “permitir e identificar a localização do produto ou proveito do crime”?
Não consigo imaginar nenhuma que não seja constrangendo o preso a confessar e devolver o bem ou produto do crime.
Devolve o produto do crime e você será solto, dirá a Autoridade ao preso. Se não devolver, continuará preso.
Mas, se devolver, apesar de solto, estará confessando a prática do crime e esta confissão será usada, pois o processo seguirá.
E se o preso for inocente? E se não tiver praticado crime algum? Este ficará preso, já que não tem o que devolver.
Maria era inocente. Não tinha crime a confessar e nem dinheiro a devolver. Pensou em lutar para provar a inocência, decidiu impetrar um habeas corpus. Mas seu primo advogado lembrou que também já estava em vigor a quarta medida. Então só lhe restava mesmo juntar suas economias, confessar o crime que não cometeu e pagar o resgate.
Ao receber o dinheiro, o dono do supermercado puxou uma salva de palmas para o promotor que, lisonjeado, passou a discursar que tudo aquilo só tinha sido possível ante a incansável luta da sociedade pela aprovação das Dez Medidas e que, no novo Brasil, a corrupção está com os dias contados.