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Pelo fim da delação premiadaPelo fim da delação premiada

Augusto de Arruda Botelho

Advogado criminalista e Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado na edição de 10/10/2014 do jornal Folha de S. Paulo

Aos 13 anos, a influência dos filmes americanos me foi fundamental. Os processos de júri popular, o “protesto, Excelência”, o melodrama para convencimento dos jurados. Aos 16 foi a vez da política fazer sua parte. A utopia, o Estado versus cidadão, controle e opressão versus liberdade, incutiram em mim o ideal de buscar incessantemente que a voz de todos fosse sempre ouvida.

 

Já na faculdade, as aulas de direito penal trouxeram racionalidade e técnica às minhas convicções. Fato é que hoje, aos 37 anos, sou e sempre serei um advogado criminalista de defesa, um defensor ferrenho das garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição.

 

Quando me perguntam que tipo de acusado eu não defendo –e tal pergunta é muito mais recorrente do que gostaria–, a resposta é sempre imediata: aqueles de enveredam pelo caminho da delação premiada. Faço essa escolha por várias razões.

 

A primeira certamente se situa no campo da ética e da moral. Quem se vê acusado de um crime, por pior que seja, por mais culpado ou inocente que essa pessoa possa ser, tem à sua disposição advogados, direitos e garantias, e com eles poderá dignamente se defender. Expiar sua culpa à custa da liberdade alheia não me parece ser um modo digno de se defender.

 

Mas isso nem é o principal. As ressalvas morais ao comportamento dos alcaguetes escondem um mal que me parece bem maior: acabam por colocar em segundo plano o que realmente está por trás da delação premiada –o sombrio e triste percurso percorrido para se chegar até a decisão do réu de optar por ela.

 

A delação, ao contrário do que certo “advogados” propagandeiam, não tem sido uma opção voluntária do acusado. A caguetagem na prática é uma imposição, uma coação legitimada por juízes e promotores que, antes de oferecerem a “benesse”, impingem ao cidadão uma série de atrocidades.

 

Antes da delação vem a prisão ilegal, antes da prisão ilegal vem a condução coercitiva ilegal, antes dela, muitas vezes, vem a interceptação telefônica ilegal, e por aí uma série de ilegalidades.

 

Quando uma prisão (ilegal) finalmente é consumada, aí começa a tortura. Não, aqui não uso uma figura de linguagem. A tortura ocorre, sim, tanto psicológica quanto física. Ameaçam o preso com a prisão (mais ilegal ainda) de seus familiares, ameaçam o preso com transferências arbitrárias de unidade prisional, ameaçam o preso com manchetes de jornal declarando não sei quantos anos ele pegará de cadeia caso não ceda e revele fatos que sabe, ou que muitas vezes não sabe, mas ouviu dizer –ou mesmo supostos fatos que não passam de deslavadas mentiras.

 

O que chega aos olhos de quem não transita pelo mundo da Justiça criminal é apenas um retrato colorido do resultado da farsa. O criminoso, antes um pária que precisava ser encarcerado em regime de segurança máxima, resolve reavaliar a conduta de sua vida e com isso abrir o bico. Quase como se a prisão servisse como um spa da consciência.

 

A partir daí, como um bom cidadão ciente de seu relevante papel na comunidade, opta por confessar àquele que lhe acusa todos os seus pecados, todos os seus desvios, esperando assim o tranquilo sono dos justos. Por trás desse réu arrependido está um homem ou mulher que, após longo período de privação ilegal de sua liberdade, física e psicologicamente comprometido, quase que como um paciente terminal que pede a eutanásia, fere de morte seu legítimo direito de se defender e faz uma opção não de tese de defesa, mas, sim, de sobrevivência.

 

Por isso, reafirmo: sou um advogado de defesa e advogados assim não podem se calar, se curvar, muito menos participar de arbitrariedades inadmissíveis em um Estado democrático de Direito.

Augusto de Arruda Botelho

Advogado criminalista e Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado na edição de 10/10/2014 do jornal Folha de S. Paulo

Aos 13 anos, a influência dos filmes americanos me foi fundamental. Os processos de júri popular, o “protesto, Excelência”, o melodrama para convencimento dos jurados. Aos 16 foi a vez da política fazer sua parte. A utopia, o Estado versus cidadão, controle e opressão versus liberdade, incutiram em mim o ideal de buscar incessantemente que a voz de todos fosse sempre ouvida.

 

Já na faculdade, as aulas de direito penal trouxeram racionalidade e técnica às minhas convicções. Fato é que hoje, aos 37 anos, sou e sempre serei um advogado criminalista de defesa, um defensor ferrenho das garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição.

 

Quando me perguntam que tipo de acusado eu não defendo –e tal pergunta é muito mais recorrente do que gostaria–, a resposta é sempre imediata: aqueles de enveredam pelo caminho da delação premiada. Faço essa escolha por várias razões.

 

A primeira certamente se situa no campo da ética e da moral. Quem se vê acusado de um crime, por pior que seja, por mais culpado ou inocente que essa pessoa possa ser, tem à sua disposição advogados, direitos e garantias, e com eles poderá dignamente se defender. Expiar sua culpa à custa da liberdade alheia não me parece ser um modo digno de se defender.

 

Mas isso nem é o principal. As ressalvas morais ao comportamento dos alcaguetes escondem um mal que me parece bem maior: acabam por colocar em segundo plano o que realmente está por trás da delação premiada –o sombrio e triste percurso percorrido para se chegar até a decisão do réu de optar por ela.

 

A delação, ao contrário do que certo “advogados” propagandeiam, não tem sido uma opção voluntária do acusado. A caguetagem na prática é uma imposição, uma coação legitimada por juízes e promotores que, antes de oferecerem a “benesse”, impingem ao cidadão uma série de atrocidades.

 

Antes da delação vem a prisão ilegal, antes da prisão ilegal vem a condução coercitiva ilegal, antes dela, muitas vezes, vem a interceptação telefônica ilegal, e por aí uma série de ilegalidades.

 

Quando uma prisão (ilegal) finalmente é consumada, aí começa a tortura. Não, aqui não uso uma figura de linguagem. A tortura ocorre, sim, tanto psicológica quanto física. Ameaçam o preso com a prisão (mais ilegal ainda) de seus familiares, ameaçam o preso com transferências arbitrárias de unidade prisional, ameaçam o preso com manchetes de jornal declarando não sei quantos anos ele pegará de cadeia caso não ceda e revele fatos que sabe, ou que muitas vezes não sabe, mas ouviu dizer –ou mesmo supostos fatos que não passam de deslavadas mentiras.

 

O que chega aos olhos de quem não transita pelo mundo da Justiça criminal é apenas um retrato colorido do resultado da farsa. O criminoso, antes um pária que precisava ser encarcerado em regime de segurança máxima, resolve reavaliar a conduta de sua vida e com isso abrir o bico. Quase como se a prisão servisse como um spa da consciência.

 

A partir daí, como um bom cidadão ciente de seu relevante papel na comunidade, opta por confessar àquele que lhe acusa todos os seus pecados, todos os seus desvios, esperando assim o tranquilo sono dos justos. Por trás desse réu arrependido está um homem ou mulher que, após longo período de privação ilegal de sua liberdade, física e psicologicamente comprometido, quase que como um paciente terminal que pede a eutanásia, fere de morte seu legítimo direito de se defender e faz uma opção não de tese de defesa, mas, sim, de sobrevivência.

 

Por isso, reafirmo: sou um advogado de defesa e advogados assim não podem se calar, se curvar, muito menos participar de arbitrariedades inadmissíveis em um Estado democrático de Direito.

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