Em entrevista ao IDDD, o Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária comenta a visita ao Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Manaus), modelos carcerários adotados no país e as violações aos direitos dos presos nas unidades
Alguns dias após o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), que resultou na morte de 56 pessoas, a Pastoral Carcerária Nacional, representada pelo seu Coordenador Nacional, Padre Valdir João Silveira, participou de uma inspeção em unidades prisionais da cidade para averiguar a situação dos presos e seus familiares.
Em visita ao Compaj em 2013, a Pastoral já havia constatado precariedades estruturais e desrespeito aos direitos dos presos, pois na época a unidade contava com mais que o dobro de pessoas presas além da capacidade, falta de colchões nas celas, carências no atendimento médico e ausência de kits de higiene e roupas de banho para os encarcerados. Na mesma linha, em outubro de 2016, menos de 3 meses antes do massacre, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), classificou em relatório de inspeção o estabelecimento como péssimo para qualquer tentativa de ressocialização, diagnóstico endossado pelo relatório divulgado em seguida pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura, destacando que o complexo abrigava 1.203 detentos em novembro de 2016, dispondo de apenas 450 vagas.
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa conversou com o Padre Valdir sobre as violações constatadas nas visitas, modelos prisionais e outros temas que marcam o sistema carcerário do país. Confira a seguir:
Quais tipos de violações aos direitos dos presos foram constatados na visita a Manaus?
Pe. Valdir João Silveira: O sistema prisional em si é uma violação de direitos, que desencadeia outra série de violações. Vou explicar algumas das inúmeras violações que decorrem a partir da prisão: na porta de entrada [do sistema], a grande violação é a falta das audiências de custódia, que acontecem na minoria das comarcas, gerando um índice altíssimo de presos provisórios no Brasil [40% de acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen/Ministério da Justiça – dados de dezembro/2014], sendo o estado do Amazonas campeão, com uma taxa de 67%.
Ao chegar na unidade prisional, as violações são constantes, pois nenhum estabelecimento passaria – e nem aceitaria receber – em uma inspeção da vigilância sanitária e revista do corpo de bombeiros. Como são órgãos públicos precisariam de alvarás de funcionamento, porém nenhuma unidade, seja no Amazonas e em qualquer lugar do Brasil, passa por essas inspeções. A falta de estrutura do cárcere é uma violação.
Ao falar com os familiares dos presos que morreram em janeiro em Manaus, eles relataram o alto custo de manutenção da pessoa presa para a família, que custeava medicamentos, curativos e até atendimento por médicos particulares, pois a unidade, que é privatizada, pedia isso para eles, sendo que a maioria desses familiares são mulheres pobres, muitas desempregadas ou com trabalhos informais.
Outra coisa que causa indignação é que os familiares e também a Pastoral Carcerária local haviam divulgado cartas assinadas pelos presos que morreram com denúncias e pedidos de socorro, pois já sabiam que iam ser mortos há muito tempo. Quando eu, representantes da Justiça Global, Conectas e membros da Câmara dos Deputados e da assembleia legislativa do estado fomos falar com o Secretário de Segurança Pública do Amazonas ele admitiu: “Nós sabíamos que isto iria acontecer, só não sabíamos o dia e a hora”. Então, foi algo anunciado, mas ninguém fez nada. Isso é mais uma violação.
Uma outra revolta é: como o Estado – representado por seus três poderes – mantém locais totalmente ilegais? Se a vigilância não aprova um estabelecimento prisional, como pode funcionar? Além disso, no caso de Compaj que é uma unidade privatizada, o TCU não havia analisado o convênio [da empresa administradora com o governo estadual], mesmo sendo o local com custo mais alto para a manutenção do preso no país. Cadê o TCU para fiscalizar isso? Cadê a ação do Ministério Público no caso? Cadê a ação do juiz corregedor dos presídios para fiscalizar esses contratos também? E o CNJ, que fez dois mutirões em Manaus e constatou violações nas unidades, quais providências tomou? E pelo Tribunal de Justiça do estado? Isso, que parece uma desordem, na verdade é o corporativismo do sistema prisional brasileiro que se espalha em nível nacional.
Ao contrário do que diversas organizações da sociedade civil e especialistas vem recomendando, o Governo Federal anunciou em seu Plano Nacional de Segurança Pública, divulgado em janeiro, a construção de novas unidades prisionais. Por que essa medida é equivocada?
VJS: Há um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), contratado pelo CNJ para fazer uma análise da reincidência criminal no país, que apresenta dados de 1938 a 2009. Nesse período de quase 70 anos, o sistema carcerário aumentou 83 vezes, enquanto a população nacional foi multiplicada por cinco. Existe outro dado do Ministério da Justiça sobre homicídios que comprova que quanto mais aumentam as vagas em presídios, cresce o número de crimes e os índices de violência. Então a construção de mais presídios é equivocada, não apenas por questões ideológicas da Pastoral, mas também porque os dados mostram que isso faz mal para toda a sociedade.
Outro ponto anunciado no plano e bastante criticado é o uso de tropas das forças armadas nos presídios. Quais os problemas envolvidos nesta medida?
VJS: Recebemos hoje, junto com a OAB e o Depen, e-mails de familiares de presos no Rio Grande do Norte [na Penitenciária Estadual de Alcaçuz] sobre a entrada das forças armadas na unidade. Eles entram no presídio para impedir fugas, mas não as violações internas. Em Alcaçuz há vários presos doentes e feridos, sem atendimento médico e alimentação, até com limitação de água, ou seja, sem condições mínimas de dignidade humana. Para isso as forças armadas não olham, pois não é o objetivo, mas acaba aumentando a revolta do preso. E depois que as forças armadas vão embora, a violência volta à unidade.
Como vê a questão de privatização de presídios?
VJS: Há o problema do preso ser a barganha, o lucro, pois nenhuma privatizada vai cuidar de preso por caridade. Em termos de segurança, as condições dentro dos [presídios] privatizados são mais rigorosas do que nas [prisões] estatais. Um exemplo: no ano passado, em 2016, em uma unidade privatizada encontrei em uma segunda-feira um grupo de pessoas que tinham sido presas na sexta-feira anterior, e estavam na chamada “inclusão”. Quando esses presos me viram começaram a pedir água, pois estavam desde o dia que foram presos sem água e alimentação. Ao pedir aos funcionários da unidade que levassem água para os presos, eles contestaram dizendo que eu estava atropelando o procedimento da unidade. Outro grupo que eu encontrei no estabelecimento estava na cela de “seguro”, haviam chegado na sexta-feira a noite e ficaram até a segunda-feira algemados, com as mãos para trás, em pé, e também sem alimentação e água esse tempo todo.
Pedrinhas, no Maranhão, onde já estive, é um presídio privatizado com histórico de várias rebeliões, fugas e mortes, devido à falta de alimentação e banho.
No Complexo Penitenciário Público Privado (CPPP) de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, a direção só permite falar com presos que eles prepararam para elogiar a unidade. E ao ver um preso elogiando o presídio sabemos que ele está mentindo, pois afinal ninguém quer ficar engaiolado.
Ou seja, o resultado é que as rebeliões se tornam mais constantes e a ocorrência de tortura e maus tratos se agravam nas [unidades] privatizadas. Nos EUA, que tem a maior população carcerária do mundo, o governo Obama reviu os contratos e retirou várias [empresas] privatizadas do sistema prisional, pois se notou que quanto mais se privatizava as unidades, mais aumentava o número de presos.
Existe algum sistema penitenciário em outros países que poderia servir como modelo para o Brasil?
VJS: Já adotamos alguns modelos alternativos. O mais recente é o chamado “modo de respeito”, aplicado em Goiás e Alagoas, que usa a metodologia da Justiça Restaurativa. Também temos o modelo das APACs, que usa igualmente a metodologia da Justiça Restaurativa, e hoje é muito propagandeada, pois dizem que nelas há uma liberdade de pensamento e decisão, quando na verdade o preso tem que ser alienado e aceitar o sistema sem questionamentos. Ou seja, o preso tem o corpo e a mente controlados. Esses modelos que dão mais certo são os que mais apostam na alienação da pessoa presa, pois a metodologia é tão rigorosa e punitiva, que os presos de adaptam por medo de voltar para o sistema tradicional, que é mais violento. Preso adaptado é preso alienado que não reage às injustiças do sistema prisional.
Nenhuma unidade prisional pode garantir uma condição social para a pessoa melhor do que ela tinha antes de ser presa. No confinamento só podemos criar pessoas com desajustes sociais. A própria função da prisão é contraditória: a pessoa não sabe conviver em sociedade, mas você a isola numa caixa para aprender a conviver em sociedade.
No Brasil grandes facções criminosas nasceram dentro dos presídios. O que isso sinaliza sobre a nossa política penitenciária e o nosso sistema de justiça criminal?
VJS: Paulo Freire já dizia que quem é educado em local de opressão torna-se opressor. O Judiciário prende e abandona a pessoa presa em condições totalmente impróprias e ilegais. Uma vez abandonado, o preso sofre a tortura do sistema prisional que não fornece condições mínimas de sobrevivência, já que é negado o acesso a necessidades básicas, como alimentação e assistência de saúde. Então para sobreviver e se defender da violência do Estado, o preso precisa se organizar. E como o pobre vai se organizar se não tem dinheiro para isso? O seu modo de organização também é de forma ilegal, pois no que é legal, não há espaço para ele. Assim nascem as chamadas facções de presídios, para que os presos possam ter acesso a alimentos um pouco melhores e assistência médica.
Atualmente, com o aumento da crise econômica, diminuiu o envio de verbas para o sistema prisional, piorando ainda mais a alimentação e assistência de saúde. Com isso os presos passaram a precisar de mais dinheiro, o que é conseguido por meio do comércio de drogas e assaltos.
A Justiça criminal não está preocupada com o resultado da punição, pois só olha para o passado e condena a pessoa. Isso se torna o “pulo” do crime organizado, já que esse sim se preocupa com as consequências da prisão, para o preso e sua família.