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Pacto descumprido

Hugo Leonardo
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 30 de janeiro de 2016.

O professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, Luiz Felipe Alencastro, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo (25/01) relembra o grande rábula que foi Luiz Gama. Rábula porque, tendo sido escravo e negro, nunca pôde graduar-se na então Faculdade de Direito de São Paulo, que já no século XX veio a tornar-se a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Uma escola pública nunca aceitou um dos maiores advogados da história por ser negro e ex-escravo.

Hoje, Luiz Gama possui, tardiamente, o título de advogado, que sempre foi e, de sobra, a honraria de Herói da Pátria.

Relembra, ainda, Alencastro que uma das lutas de Luiz Gama foi buscar a alforria de escravos durante o Império, ingressando em juízo em favor daqueles (não) cidadãos, tratados como coisas, para que se lhes reconhecessem direitos básicos à cidadania e, dentre eles, a liberdade.

Ocorre que o escravismo perduraria por mais 30 anos. A legislação aprovada era solenemente ignorada pelos senhores de escravos, fosse no campo ou na cidade, mas também por membros do Judiciário e governantes, que, naturalmente, também possuíam escravos. Cunhou-se, inclusive, o termo de “Lei para inglês ver” porque servira apenas para arrefecer a cobrança que aquele país fazia ao Império do Brasil para que cessasse o tráfico de escravos.

Atualmente, mais de 150 anos depois, o Brasil ocupa o 4º lugar em número absoluto de presos e em velocidade é o país mais eficaz em alargar o seu contingente populacional nas masmorras medievais, porém contemporâneas.

Observe-se que no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal está expressamente previsto o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência, como queiram. E, se não bastasse, há no país mais de 250 mil presos provisórios[1] aguardando julgamento. Milhares de inocentes que podem jamais ter contra si um decreto condenatório. No entanto, estão presos. Já estão sendo punidos. Detidos em estabelecimentos abarrotados, sem iluminação, sem comida e higiene adequadas.

Ademais, ocupam esse espaço sem qualquer critério de separação, seja pela natureza do suposto crime cometido, ou tempo de pena cumprido, também em total desrespeito aos dispositivos do art. 5º, incisos XLVI e XLVIII, igualmente da Constituição Federal.

Sem contar as milhares de pessoas que estão presas em regime fechado aguardando vagas no semiaberto. E em razão unicamente da deficiência estatal, terminam por cumprir uma pena para além daquela oriunda da condenação. Portanto, ilegal, cruel e degradante, contrariando mais preceitos da Constituição Federal (art. 5º, incisos XLIX e XLVII, alínea ‘e’). Isso, enquanto se espera o Supremo Tribunal Federal julgar a proposta de súmula vinculante de nº 57 que, se implementada, estabelecerá que caso o Estado não proveja vagas em regime semiaberto, o cidadão deverá ser colocado em regime aberto ou, também na falta deste, em prisão domiciliar. Ou seja, aguarda-se o Supremo Tribunal Federal dizer que a Constituição precisa ser cumprida.

Assim como foi com a edição da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime. Passaram-se 20 anos para se definir que aquele despautério era inconstitucional, que subvertia a sistemática da execução e a individualização da pena.

O Brasil vive uma cultura de desrespeito aos postulados legais, protagonizado não apenas por cidadãos leigos, mas também por aqueles que operam o sistema de justiça, a atividade persecutória.

Procuradores da República integrantes da famosa Força-Tarefa da Lava-Jato alardeiam pelo Brasil a ideia de alterar a legislação processual-penal do Brasil para o combate à corrupção. Dentre as fatídicas 10 medidas propostas, está a legitimação da prova ilícita no processo, em descompasso com o pacto político materializado na Constituição Federal em 1988 (Art. 5º, inciso LVI).

No mesmo esteio, a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para atacar a Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na qual se uniformizou em âmbito nacional a denominada audiência de custódia. Aduzem os magistrados que o CNJ usurpou capacidade legislativa do Congresso Nacional e, ademais, que o instituto atacado seria apenas relevante para coibir homicídio e tortura da época da ditadura militar. Na petição inicial, transcreveu-se o seguinte trecho escrito pelo presidente da entidade e publicado no jornal Folha de São Paulo:

“Tal providência legislativa foi uma maneira de comprometer os ditadores a respeitarem os direitos humanos e, ainda, de impedir o assassinato e a tortura.

Assim, é preciso salientar que naquela época, no Brasil, grande parcela dos delegados de polícia não era concursada. Ou seja, não tinha formação acadêmica e nem comprovação de mérito. Daí tínhamos que a regra era o completo desrespeito dos direitos humanos.

Hoje, mais de 45 anos depois, há uma mudança completa nas situações política e jurídica no país. Temos delegados de polícia preparadíssimos, Ministério Público atuante e uma defensoria pública digna de todos os elogios”.[2]

Entretanto, nenhuma linha foi escrita sobre o dever de o Brasil implementar o conteúdo da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) internalizado, sem ressalvas, em nosso ordenamento por meio do Decreto nº 678, de 22 de novembro de 1992, e que traz o seguinte comando em seu art. 7º.5:

“Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga seu processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Evidente, portanto, que o Brasil possui não apenas dever de implementar o referido dispositivo legal, como já o contempla formalmente em seu ordenamento com plenitude de eficácia.

O que se deveria indagar é por que tal comando há tanto previsto ainda não foi aplicado. E o porquê de todos os outros artigos constitucionais acima citados, para ficar apenas na Constituição da República, serem cotidianamente e solenemente ignorados pelo Estado.

Será que a ausência de um regime aparentemente totalitário afasta a necessidade de aplicação de um instituto capaz de refrear desmandos do braço armado estatal? A Human Rights Watch apontou alguns dos problemas graves vividos no Brasil e a necessidade de aplicação e aprimoramento das audiências de custódia.[3]

Qual é a diferença entre cidadãos serem torturados e mortos pelas forças armadas ou pelas polícias? Qual é a idiossincrasia entre violar a lei no cometimento do delito e omitir-se diante de um direito legalmente assegurado, contribuindo, com isso, para o descumprimento da lei acarretando tortura e mortes?

A situação carcerária no Brasil é uma vergonha. O desprezo à presunção de inocência outra. A quantidade de cidadãos que são capturados pela malha penal e que não possuem acesso a uma defesa de qualidade e sequer informação adequada de sua real situação é abismal. Mas, afinal de contas, tratam-se sempre dos mesmos a serem vitimizados por essa política criminal, seja de criação de tipos penais repressores, seja pela constante relativização de direitos e garantias individuais ou pela não aplicação de institutos consagrados em nosso ordenamento, como a audiência de custódia.

Porém, ao tempo de Luiz Gama, o que era prerrogativa dos Senhores que se concentravam nas mesmas pessoas dos governantes, hoje passa por uma elite burocrática míope, que ignora a força do Estado e de suas políticas penais repressoras. E os cidadãos seguem numa caudalosa cortina de fumaça, ora aplaudindo ideários fascistas contra tudo e todos, ora regozijando-se com prisões de pessoas de uma certa elite econômica, esquecendo-se que o que se faz aqui e acolá contra poderosos, faz-se de forma massificada contra a população mais vulnerável economicamente.

Resta-nos, pois, aguardar para que o IBAMA, no esteio da interdição do Zoológico do Rio de Janeiro, possa fiscalizar qualquer estabelecimento prisional de homens e invocar o básico direito animal para a defesa de humanos.

E, quem sabe, avançar possamos, para, após olhar com atenção o que significa a privação de liberdade no mundo fenomênico, alcançar a vergonha de nossa condição na escala zoológica e no baixo índice civilizacional. E que isso nos permita agir como seres dotados de razão e não semoventes autômatos e refratários aos iguais, por medos e sentimentos ligados a instintos de brutalidade e violência.

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[1] Informação disponível no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN – junho/2014, publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN em 23.6.2015. Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acessado em 25 de janeiro de 2016.
[2] Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/adi-anamages-audiencias-custodia.pdf. Acessado em 25 de janeiro de 2016.
[3] Disponível em https://www.hrw.org/pt-br/report/2015/10/19/282335. Acessado em 25 de janeiro de 2016.

 

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