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Onde a Arena vai mal, mais um time no nacional

Guilherme Madi Rezende
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 3 de agosto de 2015.

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Durante o período ditatorial, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional, partido governista, tinha no futebol um forte instrumento de promoção e fortalecimento do regime. Isso, aliás, não é novidade nenhuma e nem exclusividade brasileira. Vem dessa época a frase acima citada. A fim de agradar os poderes locais, o governo inflava o campeonato nacional incluindo times pequenos que não contavam com a mínima expressão ou relevância para o futebol nacional. Havia, segundo Thomaz Lemmi, uma espécie de troca de favores. Os votos em regiões estratégicas eram trocados pela participação de um novo time no campeonato nacional”. Assim é que o campeonato em 1971 contou com 20 times e, crescendo ano a ano, chegou a 94 em 1979. Onde a Arena ia mal, um time no nacional, onde ia bem, um time também…

Não sei dizer o quanto essa prática tão usual – em especial, mas não só, nas ditaduras – tem qualquer relação com o 7 a 1 que tomamos da Alemanha. Não sei mesmo dizer se há qualquer relação entre essa goleada e o fato de Marin e Del Nero terem sido da Arena… O lance é que o 7 a 1 também virou bordão para designar tudo o que vai muito mal. E no sistema de justiça, em especial no penal, estamos tomando de 7 a 1. A coluna do IDDD no JOTA escrita dois meses atrás pelo José Abissamra escancara a falência do sistema. E isso tem muito a ver com o que se tem feito em termos de expansão do direito penal.

Quando as coisas vão mal, mais um crime no Código Penal…

As últimas jogadas desse movimento expansionista foram a edição da lei 13.142 de 6 de julho de 2015 sancionando o que, em tom algo jocoso, tem sido chamado de “peemecídio”; e a aprovação, por enquanto só em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da PEC da redução da maioridade penal.

Explicando em que consiste o “peemecídio”: o artigo 1º da lei 13.142 incluiu mais uma qualificadora no crime de homicídio, o inciso VII, prevendo pena de 12 a 30 anos se o homicídio for praticado contra autoridade ou agente descrito nos artigos 142 e 144 da Constituição – um rol enorme de cargos das forças armadas e da segurança pública – , integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou agente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.

Esse dispositivo, sem dúvida, agradou as autoridades ali mencionadas – assim como a inclusão do Desportivo Ferroviária no campeonato nacional agradou os Capixabas –; e só.

Mal redigida, a qualificadora do inciso VII, se bem aplicada, apenas chove no molhado. É que, em regra, qualquer homicídio praticado contra qualquer uma das pessoas ali elencadas, em razão da função desenvolvida, já atrairá a qualificadora da torpeza. Em quase vinte anos de atuação no Tribunal do Júri, não me lembro de ter visto um único caso de homicídio cometido em razão do exercício de uma dessas funções que não tenha sido qualificado seja pelo motivo torpe, seja porque praticado para ocultar ou garantir a impunidade de crime anterior (artigo. 121, §2º, incisos I ou V, CP). Pior ainda se for mal aplicada, fazendo incidir cumulativamente mais esta qualificadora.

Mas a lei 13.142 é ainda mais esdrúxula em seu artigo 3º, que altera a lei de crimes hediondos para nela incluir a lesão corporal gravíssima (denominação que não existe no Código, mas que foi consagrada pela doutrina para as hipóteses previstas no § 2º do artigo 129), além da lesão seguida de morte, quando praticada contra os já mencionados agentes. É esdrúxula porque faz a hediondez do crime depender da qualidade da vítima. A lesão corporal tipificada no §2º do artigo 129 pode ou não ser hedionda. Não será hedionda se a vítima for qualquer outra pessoa – uma criança, por exemplo – diferente daquelas elencadas na mal formulada lei.

A outra jogada desse movimento, como dito acima, foi a aprovação na Câmara dos Deputados, em primeiro turno, da Proposta de Emenda Constitucional – PEC171, que indica a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos no caso de crimes hediondos. Aprovação esta que se deu através de um processo legislativo de questionável legalidade (para ser eufemista), já que, na véspera de sua aprovação, proposta semelhante havia sido rejeitada. Manobra da presidência, então, fazendo vista grossa do artigo 60, §5º da Constituição, que impede que matéria rejeitada seja objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa, submeteu a proposta à nova votação, oportunidade em que foi aprovada.

O que há de comum entre essas duas jogadas: edição da lei 13.142 e aprovação em primeiro turno da PEC 171?

Expansionismo do direito penal como tábua de salvação de todos os males aparentes?

Sim, mas não só. A expansão do direito penal – e estes dois casos o demonstram – é quase sempre unilateral, seletiva e contraditória: emprega-se um discurso de proteção do cidadão vulnerável como razão de ser do expansionismo punitivo, quando, na realidade, jovens negros e pobres lotam as penitenciárias ao mesmo tempo em que correspondem a quase dois terços das vítimas de homicídios praticados no Brasil.

Enquanto isso, a tática mais amplamente utilizada para coibir a criminalidade continua sendo a lógica militarizada de policiamento e repressão. Trata-se de verdadeira guerra (às drogas, ao crime, aos pobres) que não poderia ter outro desfecho. Em 2013, 316 policiais civis ou militares foram mortos em razão de sua profissão ao mesmo tempo em que 1.259 pessoas foram mortas pelas forças de segurança supostamente protegidas pela nova lei. Morre mais gente em nossa inútil política de enfrentamento militar do que todas as vítimas de homicídio da Alemanha, Espanha e Itália somadas.

Enquanto isso, editam-se leis populistas que de nada adiantam para conter a violência virulenta que se observa nas ruas. Morrem policiais, morrem suspeitos, morrem inocentes, só não morre a ânsia punitiva da população alimentada pelo ímpeto populista de políticos mal intencionados que estimulam o confronto entre policiais e criminosos, sabendo que o saldo será de muitas mortes a ainda mais violência.

Caso o legislador quisesse mesmo proteger e valorizar a vida das forças de segurança, ao invés de editar leis criminalizantes populistas e inócuas, que só servem para aumentar seu capital político, refletiria seriamente acerca da criação de um sistema policial desmilitarizado, de ciclo completo, que valorize a vida em geral, seja ela de policiais ou cidadãos comuns, priorizando a prevenção, não a repressão; ou então reconhecendo que a guerra às drogas consome vidas inocentes de policiais que poderiam fazer muito mais que subir favelas para enxugar gelo.

Não é com aumento de pena e diminuição da maioridade penal – enfim, com o aumento de hipóteses encarceradoras e de tempo no cárcere, que se vai resolver ou minimizar o problema da violência. O direito penal não é e não pode ser instrumento para a solução da crise de legitimidade pela qual passa a classe política brasileira perante a população. Ao contrário, sua larga utilização, sobretudo em momentos como o que vivemos, só serve para desviar o foco das questões sociais e econômicas não resolvidas.

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