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Obstrução à investigação e o direito de defesa

Francisco de Paula Bernardes Junior
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 30 de maio de 2017.

No mês passado, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar em habeas corpus determinando a soltura do empresário Eike Batista, que estava preso cautelarmente.

Contra a soltura, a grita foi geral. Comportando inclusive ofensas à pessoa do magistrado numa tentativa de se colocar em xeque sua imparcialidade na causa. Em nítido emparedamento do Judiciário contra decisões que não agradam a turba.

Particularidades do caso à parte, impressionou-nos o estardalhaço contra a soltura de um cidadão que estava preso preventivamente. Isso porque nunca se viu gritaria de igual tom em favor da soltura de alguém, quer seja rico, pobre ou de classe média.

Se estivesse ainda vivo, repetiria o Duque de La Rochefoucauld o que teria dito lá pelos idos do século XVII, quando alertou ser pura “sorte da inocência se ela encontrar a mesma proteção que a culpa”.

A barulhada, por sua vez, fez esconder algo essencial contido nesta decisão e que se mostra tão caro aos defensores de um efetivo Estado democrático de Direito: um esboço acerca dos limites da ampla defesa.

Limites estes que hoje se encontram na fronteira com o crime. E não se trata de exagero, afinal, desde 2013 possuímos na legislação contra as organizações criminosas o mal apelidado, e já bastante popular – basta ver o atual enrosco do senador Delcídio do Amaral e do presidente Michel Temer –, “crime de obstrução à justiça”, inserido no §1º, do art. 2º, da Lei 12.850/13 [1].

Apenas um parêntese antes de prosseguirmos com o essencial; o referido crime não abrange o processo judicial, ou a fase judicial, por essa razão que mal apelidado de obstrução à justiça

E isso por uma razão óbvia, que se vincula ao inquebrantável princípio da legalidade estrita: a lei não o mencionou.

O tipo penal não se referiu ao processo judicial, mas tão somente acerca da obstrução à investigação de infração penal. Sendo assim, qualquer interpretação que se faça para abarcar o “processo judicial” para dentro desta criminalização, seria de uma ilegalidade ululante.

A lição não é minha e é velha, pois há muito se sabe que em se tratando de lacuna em norma penal, é vedada a utilização de interpretações analógicas ou extensivas para se construir ou aumentar criminalizações, sob o risco de deformação da vontade do legislador e consequente inconstitucionalidade.

Mas voltemos ao ponto que aqui nos interessa tratar: o habeas corpus concedido, o crime de obstrução à investigação e a ampla defesa.

Sim, porque além do fato de se ter soltado um bilionário, o referido habeas corpus retomou uma importante discussão, iniciada há doze anos no caso Flávio Maluf[2], acerca dos direitos dos investigados, ou mesmo de réus, de concertarem versões, ou seja, de reunirem-se e conversarem no sentido de planejar estratégias para refutar acusações.

O tema é fundamental, pois ligado diretamente à constitucional ampla defesa dos acusados, que vem sendo de certa forma ameaçada pelo crime de obstrução à investigação.

Um dos pontos fundamentais reside em torno de se definir como direito dos acusados a possibilidade de realizarem reuniões, entre si e com advogados, com total liberdade para traçar estratégias defensivas, sem que isso venha a ser considerado como crime de obstrução à investigação ou, como queiram, mesmo da justiça.

Afinal, a redação do crime de obstrução à investigação não é precisa, trazendo, de uma forma geral, que o crime se consuma quando impedida ou dificultada à investigação, exigindo um alto grau de interpretação do aplicador da norma, pois com nítido fundo cultural.

O problema surge quando a defesa dos acusados é visualizada como um empecilho ao bom andamento da investigação. Naturalmente, uma defesa criminal é, em geral, uma tentativa de impedir uma condenação. Uma contraposição à acusação, plena e efetiva. Seu exercício deve ser completo, ou seja, eficiente, e manifestado tanto pela defesa técnica, indeclinável, quanto pela autodefesa realizada propriamente pelo acusado.

Não sem razão, a boa doutrina vem alertar para o fato de que o investigado não pode ser sujeito ativo deste crime, pois, seus direitos de se defender e de não se autoincriminar impossibilitariam que respondesse por tal delito.

De uma forma técnica, alguns autores dizem de um post factum impunível.

Pois bem. Mas o que de fato importa para nós é a perigosa situação que o referido crime traduz para o livre desempenho de defesas penais, tanto pela autodefesa quanto por defesa técnica, e que urge ser tratada de forma séria e aprofundada pelo Supremo Tribunal Federal.

Evidente que não há direitos absolutos e irrestritos, que os excessos, inclusive no desempenho de defesas devem ser coibidos, mas há que se aproveitar a oportunidade lançada neste habeas corpus para se garantir um amplo espectro ao direito de defesa, do direito dos acusados de refutarem acusações de forma plena, inclusive de estabelecerem estratégia de defesa combinando versões, com vistas a não se dar margem interpretativa para uma eventual criminalização da ampla defesa e consequentemente da advocacia, quando exercida de forma efetiva e fazendo jus ao preceito constitucional.

É o que se espera de nossa Suprema Corte, principalmente nestes tempos em que há um claro flerte com o antidemocrático Estado policial.

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[1]Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

[2] STF, HC 86.864 MC/SP.

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