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O perdão de quem pode perdoar

Ludmila Vasconcelos Leite Groch

Diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 15 de dezembro de 2015.

Imagine um país com medo. Um país onde seu povo clama por medidas mais drásticas e rigorosas para se combater a criminalidade. Um país em que a prisão signifique justiça. Prisão para os ricos porque são ricos, prisão para os pobres porque são perigosos, prisão para os que confessam diante da ousadia em confessar, prisão para os que têm o desplante em negar a prática do crime. Prisão para todos, sempre.

Imagine agora, que este país tenha a quarta maior população carcerária do mundo e que o número de cidadãos atrás das grades cresça 7% ao ano. Um país que tenha um déficit de vagas no sistema penitenciário que supere a marca de 200 mil[1] e que as vagas disponíveis sejam localizadas em estabelecimentos decrépitos, sem qualquer condição de atender a critérios mínimos de humanidade.

Infelizmente, tal exercício de imaginação é absolutamente desnecessário ao leitor brasileiro. Vivemos a realidade do encarceramento em massa e para as massas. Nunca prendemos tanto e tão mal. Inevitável a reflexão sobre a real necessidade de tantas prisões e sobre as formas de diminuição da população trancafiada.

O grande paradoxo, entretanto, é que qualquer iniciativa em desaferrolhar as celas, traz consigo alta carga de rejeição e reafirma o discurso punitivista que fundamenta o cárcere. Fala-se em impunidade e em aumento da criminalidade, sem qualquer apreço às teses científicas em sentido contrário. Fazer cumprir um alvará de soltura hoje no Brasil é uma missão quase que impossível dada à quantidade de obstáculos propositadamente impostos ao ato de soltura.

Obviamente, seguindo na tese de que justiça significa prisão, o procedimento para prender alguém no Brasil é inegavelmente mais simples. Há quem defenda, inclusive, a criação da figura do “flagrante provado”, dentre outras excrescências jurídicas dedicadas a aumentar as hipóteses de encarceramento cautelar.

Mas na hora de soltar, quanta diferença! É telegrama para um lado, ligação para o outro, fax para lá, e-mail para cá, o expediente que chega ao fim, o final de semana que impede o cumprimento da decisão judicial, horas de espera injustificada. Enfim, conseguir fazer cumprir uma decisão judicial que determina a soltura de uma só pessoa hoje é trabalho hercúleo e demorado.

Voltemos, pois, ao exercício proposto no início e imaginemos agora as críticas e impedimentos criados para que se cumpra determinação de por em liberdade milhares de presos que ainda não cumpriram a totalidade de suas penas.

Estamos falando especificamente do indulto, causa de extinção de punibilidade previsto em nossa legislação infraconstitucional (Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal) e na própria Constituição Federal, importante instrumento de política criminal adotado pelo gestor do sistema penitenciário para modular o binômio: dignidade humana versus necessidade da pena.

Indulto é clemência. Forma de indulgência soberana. É atribuição exclusiva do Presidente da República e tradicionalmente concedido no final de cada ano. Constitui medida coletiva que visa beneficiar pessoas que atendam determinados requisitos objetivos.

A Constituição Federal o prevê em seu artigo 84, XII[2] e a doutrina o tem chamado de indulto coletivo. A Lei de Execução Penal, por sua vez, prevê em seu artigo 70, I, com alteração dada pela Lei n.º 10.792/2003, procedimento de concessão de indulto individual, instituto completamente diferente daquele constitucionalmente assegurado e, neste caso, incumbe ao Conselho Penitenciário “emitir parecer sobre indulto e comutação de pena, excetuada a hipótese de pedido de indulto com base no estado de saúde do preso”.

Ou seja, podemos afirmar o seguinte:

(i) no indulto coletivo, a competência para concessão é exclusiva do Presidente da República e, portanto, ressalvados os casos de disposição expressa em lei, não depende da opinião de mais ninguém para seu efetivo cumprimento;

(ii), sim, cabe ao Conselho Penitenciário a emissão de parecer que influenciará na concessão do indulto individual, nos termos do procedimento previsto na Lei de Execução Penal.

Assim, se o chefe do Poder Executivo, único responsável pelo estabelecimento das condições para concessão de aludido direito, não incluir em seu decreto a exigência de parecer prévio de outro órgão para fins de concessão de indulto coletivo, ilegal a colaboração do Conselho Penitenciário ou de qualquer órgão.

Seguindo a tese da desnecessidade de requisitos subjetivos é que foram publicados os últimos dois decretos presidenciais de indulto (2013/2014), e assim espera-se seja publicado também do ano de 2015. Em ambos os casos existiu especial previsão de que “para a declaração do indulto e comutação das penas não se exigirá requisito outro, senão os previstos neste Decreto”.

Qualquer argumento em sentido contrário – ou seja, sobre a necessidade de prévio parecer do Conselho Penitenciário para fins de indulto coletivo – é incabível.

Isso porque, o já mencionado artigo 70 da Lei de Execução Penal versa apenas sobre o indulto individual, com procedimento próprio regulado pelos artigos 188 a 193. Neste caso, e somente neste caso, sua concessão depende da análise de requisitos objetivos e subjetivos do condenado (nos moldes do conhecido exame criminológico para fins de progressão de regime).

Os Tribunais superiores, aliás, há muito veem afirmando no mesmo sentido, ou seja, acerca da desnecessidade da exigência de parecer do Conselho Penitenciário para concessão de indulto coletivo, in verbis: “Fere o princípio da legalidade fundamentar a vedação do indulto de penas em requisitos não previstos no decreto presidencial, visto que os pressupostos para a concessão do benefício são da competência privativa do Presidente da República”.[3]

Não há discussão. Não há dúvidas. Não se trata de pedido, mas de direito constitucionalmente assegurado. A exigência de parecer do Conselho Penitenciário para fins de concessão de indulto coletivo é ilegal e cabe a todos os advogados exigirem o imediato cumprimento da Lei, sem mais vistas, ofícios, pareceres ou opiniões, somente a Lei.

[1] Dados do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), com dados referentes a junho de 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/relatorio-depen-versao-web.pdf
[2] XII – “conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”.
[3] STJ – 5ª Turma, habeas corpus nº 65308/SP (2006/0187678-1), Relatora Ministra Jane Silva, julgado em 25/09/2007, DJ 15/10/2007 p. 309; STJ – Recurso Especial nº 819.744/SP (2006/0018496-0) e acolhido por unanimidade pela 5ª Turma, julgado em 03/04/2007, DJ 04/06/2007 p. 418; STJ – HC 287.535/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 13/05/2014, DJe 21/05/2014.