Gustavo de Castro Turbiani
Integrante do Grupo de Litigância Estratégica do IDDD
Assunto tormentoso não apenas no meio jurídico, o “foro privilegiado” ganhou as cenas nos últimos tempos, sobretudo em razão da proposta feita pelo Ministro Luis Roberto Barroso, quando do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937: Sugeriu S. Ex.ª alterar as hipóteses de incidência do foro por prerrogativa de função, limitando-o a crimes cometidos durante e em razão do exercício do cargo público que o confere, de modo que a prática de crime em momento prévio à diplomação não confira prerrogativa de foro ao agente, ainda que, durante o julgamento, esteja ele investido na função; a mesma exclusão de foro especial ocorreria, ainda, em relação ao julgamento de crime praticado durante o exercício do mandato, mas sem nexo causal com a função pública exercida.
Não se questiona a boa intenção da proposta – e seria maldade demais lembrar que não é bem o paraíso que se está cheio de boas intenções… –, lançada com o objetivo de desafogar os Tribunais Superiores e de abrandar um impreciso “sentimento de impunidade”, argumento de natureza psicológica que, lamentavelmente, a cada sessão de julgamento, abocanha, digere e excreta normas constitucionais.
Ocorre que as “premissas psicanalíticas” da mudança proposta simplesmente não se verificam, como demonstrou o julgamento Ação Penal 470 pelo Pleno do STF. Eram 40 os acusados, que acabaram julgados em tempo razoável – virtualmente menor do que seria necessário para se chegar ao fim do processo se ele tivesse tramitado a partir da primeira instância –, sendo que os condenados principiaram logo o cumprimento das penas. Onde a prática demonstrou julgamento e condenação em tempo razoável, não se pode falar de impunidade tardinheira, não é mesmo?
Para fugirmos da supremacia do divã sobre o Direito, seria preciso então debater o foro por prerrogativa de função sob a perspectiva de sua ratio, sobretudo de modo a verificar se eventual decisão a respeito de suas hipóteses de incidência vão ao seu encontro.
Nesse sentido, vale ressaltar que o foro por prerrogativa de função é instituído com duas funções precípuas: de um lado, proteger aquele que está investido em cargo público; de outro, zelar pela própria sociedade e garantir o pleno funcionamento da justiça sem qualquer influência externa e favorecimento pessoal decorrente de tal influência.
Em relação à primeira função, em suma, a prerrogativa de foro impede que fatores políticos sejam levados em consideração por julgadores de instância inferior, evitando-se, assim, que a investigação e julgamento daqueles que detêm função pública sejam conduzidos por aspectos eminentemente políticos; a segunda função é justamente inversa: impedir que o acusado/investigado exerça algum tipo de influência sobre o julgador e, com isso, se locuplete indevidamente. Nas palavras do Ministro Sidney Sanches, em voto no Inquérito 687, proferido em 25 de agosto de 1999, “presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado”.
Note-se que as funções referidas estão intimamente relacionadas ao próprio exercício do cargo, isto é, ambas visam a evitar influências que têm maior potencial de ocorrência quando o agente encontra-se na “fruição” de cargo público. Tais influências, por sua vez, continuam tendo potencialidade de ocorrência mesmo que o crime tenha sido praticado antes da diplomação do agente no cargo ou, ainda, que não guarde relação com a função pública que confere o foro especial.
Analisando a questão sob uma perspectiva hipotética, suponha-se a prática de um crime por Deputado Federal antes de sua diplomação ou, ainda que durante o exercício do cargo, que tal crime não apresente nexo causal com a função pública exercida. Ainda que sob tais condições, o risco de o agente exercer influência sobre o julgador de piso, bem como o risco de o julgador de primeiro grau conduzir o processo com viés político, permanecem existentes enquanto o agente mantem-se Deputado Federal. Assim, a influência que o instituto do foro especial pretende evitar estará presente enquanto perdurar o exercício do cargo público, independetemente do momento e circunstâncias em que o crime foi cometido.
Assentar que o foro por prerrogativa de função deve se limitar a fatos cometidos durante e em razão do cargo que o confere é, portanto, ir de encontro com a própria razão de ser do instituto.
É importante destacar que, como arquitetada hoje, a prerrogativa da função nada tem de privilégio pessoal. O argumento constante da manifestação da Ministra Rosa Weber no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937 no sentido de que o foro especial só encontra razão de ser na dignidade do cargo, nunca na pessoa que o ocupa, razão pela qual o agente público somente merece ser julgado por Tribunais Superiores em relação a fatos que dizem respeito especificamente à função que exerce, prevalece atualmente, tendo-se em conta o foro especial como instituído.
À republicana proteção à função não é oponível a sensação de que investigados ou acusados fazem de tudo para manter os cargos que lhes permitam acesso ao foro especial. O pretenso “movimento” de alguns investigados não pode levar à derrogação da Constituição. Ademais, essa motivação espúria, atribuída a todos investigados detentores da prerrogativa, constitui generalização indevida, argumento falacioso que impressiona mais por inflamar a turba do que pela racionalidade.
Há ainda que se vislumbrar – como bem lembrou o Ministro Alexandre de Moraes quando o julgamento da Questão de Ordem – que a turma que hoje anseia pelo fim do foro especial, há poucos anos defendia justamente o contrário em relação à Ação Penal 470, afirmando que o desmembramento do processo e seu encaminhamento às instâncias inferiores é que seria sinônimo de impunidade.
Como se vê, a definição dos contornos do que hoje é a competência originária – ainda que na undécima hora, eis que aparece a designação mais adequada ao fenômeno jurídico em comento: não se trata de “foro”, pois não se trata de competência ratione loci; não é “privilegiado”, pois não constitui vantagem ver restringido o direito ao duplo grau de jurisdição – é até adequada, não merecendo modificação apenas porque a opinião pública nesse sentido vocifera.
De qualquer forma, toda e qualquer mudança deve ter origem no Parlamento, quiçá pela alteração da lei nº 8.038/90, que rege o trâmite de ações penais e investigações originárias, para extirpar eventuais entraves à celeridade dos feitos em trâmite perante os Tribunais Superiores.
Ainda que tal alteração legislativa tenha que ser realizada por um Congresso que, pelo que se “sente”, se beneficiaria da atual legislação, talvez tal proposta seja suficiente para pôr um fim aos principais descontentamentos com o instituto do foro por prerrogativa de função sem que, por outro lado, se vá de encontro às suas principais razões de existir: a proteção em favor do acusado e em favor da jurisdição, contra a influência política indevida.