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Nota conjunta contra o veto ao projeto de lei nº 1257/2014

As organizações abaixo assinadas vêm a público manifestar profunda indignação com o veto total do governador João Doria ao Projeto de Lei nº 1257/2014, que cria o Comitê e o Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo.

São Paulo é o estado mais populoso do país e abriga hoje o maior número de pessoas em locais de longa permanência (destinados especialmente a crianças, idosos e pessoas com deficiência), hospitais e leitos psiquiátricos, além de mais de um terço de toda população prisional e socioeducativa do país.

A perpetração de tortura e maus tratos, físicos e psicológicos, em espaços de privação de liberdade é prática sistêmica, constantemente denunciada em âmbito nacional e internacional pelas vítimas e seus familiares e por organizações de direitos humanos; sem que haja, contudo, políticas efetivas para reverter esse quadro. Nesse sentido, a aprovação da lei pela Assembleia Legislativa Estadual, representou um valioso avanço em prol da proteção dos direitos humanos no estado de São Paulo.

Ao contrário do que menciona o texto do veto encaminhado pelo Governador, a implementação de um sistema estadual de prevenção e combate à tortura independente e autônomo não decorre somente de inspiração na lei federal que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (Lei nº 12.847/2013), mas constitui uma obrigação assumida internacionalmente pelo Brasil no momento da ratificação da Convenção da ONU Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto nº 40/1991) e seu Protocolo Facultativo (Decreto nº 6.085/2007), e que vem sendo reiteradamente cobrada pelos organismos internacionais[1].

Ao vetar a proposta, o governador João Doria adota uma interpretação equivocada sobre a atuação do Poder Legislativo, além de negligenciar o longo e amplo debate público que envolveu a apresentação do projeto e sua aprovação.

Destaca-se que o projeto foi apresentado após ampla mobilização da sociedade civil e de atores do sistema de justiça (Ministério Público e Defensoria Pública), bem como dialogado com integrantes das Secretarias Estaduais de Justiça dos últimos anos. O texto aprovado, embora não reflita todas as reivindicações da sociedade civil, deriva de uma emenda aglutinativa subscrita pelas lideranças de 11 (onze) partidos políticos.

O Projeto de Lei nº 1257/2014 criava o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Enfrentamento à Tortura conferindo-lhes autonomia e vinculando-os, apenas administrativamente, ao Poder Legislativo, que tem como atribuição constitucional “fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, inclusive os da administração descentralizada” (art. 20, X, da Constituição Estadual).

Como ente fiscalizado, ao vetar o projeto, o Governador busca restringir as atribuições do Poder Legislativo, impondo limites e balizas não previstas constitucionalmente a como tal função deve ser exercida.

Vale destacar que prerrogativas de acesso irrestrito a locais de privação de liberdade, entrevistas reservadas, sigilo e direito de documentação, são essenciais a qualquer órgão de monitoramento e estão em conformidade com as Constituições Federal e do Estado de São Paulo, bem como com a Lei nº 12.847/2013.

As razões do veto contrariam a necessidade de um controle independente – e, em certa medida, tratando-se do Mecanismo, externo – dos atos da administração pública.

Em face do dever que assume o Estado ao colocar uma pessoa sob seu cuidado, custódia e/ou vigilância de proteger sua integridade física e psíquica e tomar medidas eficazes para prevenir a prática de atos de tortura, nos sistemas de privação de liberdade, é urgente a criação e implementação efetiva, no Estado de São Paulo, de um Comitê e um Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura autônomo e independente.

Demandamos que a Assembleia Legislativa reverta o veto tão logo findo o recesso parlamentar.

São Paulo, 17 de janeiro de 2019.

 Assinam:

AMPARAR – Associação de amigos e familiares de presos/as
Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED)
Associação Elas Existem – Mulheres Encarceradas – RJ
APT – Associação para a Prevenção da Tortura
Asbrad – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude
Assessoria Popular Maria Felipa/MG
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará – CEDECA Ceará
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Sapopemba – CEDECA Sapopemba
Centro de Direitos Humanos de Sapopemba – CDHS
Coletivo Antônia Flor – PI
Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas/SP
Conectas Direitos Humanos
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-06
Frente Estadual Antimanicomial de São Paulo
Frente Estadual pelo Desencarceramento/RJ
Frente Estadual pelo Desencarceramento/PI
Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP/PE
Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade/MG
IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa)
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM
Instinto Negra do Ceará – INEGRA/CE
Instituto Macuco
ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
Justiça Global
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura – Rio de Janeiro
Movimento Nacional de Direitos Humanos /SP
Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado dos Direitos do Idoso e da Pessoa com Deficiência da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado em Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo
Promotora de Justiça de Direitos Humanos – Área de Inclusão Social do Estado de São Paulo
Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio
Unisol Brasil

[1] Nos últimos anos, o Brasil e o Estado de São Paulo, em específico, têm sido alvo de recomendações da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a implementação de comitês e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura. No seu relatório enviado ao Brasil após sua visita ao país em 2015, o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura instou expressamente todos os governos estaduais a tomarem providências para estabelecer mecanismos preventivos estaduais de acordo com as exigências do Protocolo Facultativo da ONU e da Lei Federal nº 12.847/13. Mais informações em: 167º Períiodo de sessões da CIDH:  <https://www.youtube.com/watch?v=B0uXUCgpWc4> e  Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Visita ao Brasil realizada de 19 a 30 de outubro: observações e recomendações ao Estado Parte, parágrafos 95 e 96, CAT/OP/BRA/R.2, 24 de novembro de 2016. Disponível em https://bit.ly/2SVQi1U.