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Não sabem do que estão falando

José Carlos Abissamra Filho
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Guilherme Suguimori Santos
Associado do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 9 de junho 2015.

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O projeto de lei apresentado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), que buscava, segundo a própria associação, “possibilitar a decretação da prisão cautelar após o julgamento de primeira ou segunda instância, independente da possibilidade de recursos, nos casos de crimes mais graves” [1] chama bastante atenção. Referido projeto [2] já foi objeto de manifestações e observações veiculadas por diversos meios, bastando aqui apenas apontar que seu intuito era aumentar a incidência da prisão após condenação em primeiro grau, mesmo antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.

O objetivo, aqui, não é o de reiterar a ilegalidade da proposta, pois não convém chover no molhado (violação dos direitos e garantias individuais; violação ao princípio da presunção de inocência…); a própria Ajufe, aliás, “após examinar a repercussão da proposta (…), resolveu, sensível à opinião pública e na busca de consenso que facilite a aprovação do projeto, reformulá-lo” [3], delimitando o alcance da proposta [4] de forma a aumentar a ocorrência de prisão apenas após a condenação em segundo grau, mas ainda antes do trânsito em julgado da condenação [5].

O que chama atenção é que, aparentemente, os propositores da alteração pedem por mais prisões sem se debruçar sobre o que estão pedindo. Como assim, mais prisões?

O Brasil vem, já há anos, dedicando­se a prender bastante: “Entre 1995 e 2005 a população carcerária do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma década. A taxa anual de crescimento oscilava entre 10 e 12%. (…) Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos, de 31,05%” [6]. Segundo a mais recente pesquisa conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça [7] (de junho de 2014), o total de pessoas presas no Brasil é de 711.463 (563.526 no sistema prisional e 147.937 em prisão domiciliar). Em números absolutos, considerando os novos dados do CNJ, somos o 3º país com mais presos no mundo.

Ou seja, é curioso pedir por mais prisões, considerando que é exatamente isso que o país vem fazendo: prendendo, com ou sem julgamento [8]. No entanto, não parece haver sinais de melhora para todas as mazelas sociais que nos afligem. A questão que surge, portanto, é: quando os autodenominados cidadãos de bem afirmam que prender mais é uma solução, sabem exatamente sobre o que estão falando? Ao apontar o remédio, sabem quais seus efeitos? Sabem que estão receitando um medicamento esgotado, que não existe nas prateleiras (e que quando existe, está vencido e sem efeitos)? Que prisão é essa, afinal, que está sendo receitada?

A verdade é que essa prisão – a prisão que soluciona o país, que diminui o crime, que melhora a sociedade e traz mais segurança – não existe. E ninguém vê, ou finge que não vê, que o remédio está matando o paciente. E, não obstante, continuam receitando o mesmo remédio (por medo de permanecerem imóveis, ou medo de aceitarem o fracasso da receita que, afinal, aprenderam ser a correta). E vão surgindo propostas como a da Ajufe.

Parece haver um esforço do Estado, da sociedade civil, de organizações e de grande parte do corpo político/judiciário brasileiro para esquecer dos fatos reais; parecem preferir uma cegueira deliberada (para aproveitar os termos da moda), criando uma dissociação ingênua entre o pedido por mais prisões e o verdadeiro estado em que se encontra todo o programa de execução criminal nacional. Preferem ignorar que o próprio instituto da prisão está em crise.

Um episódio brasileiro indica bem do que se está a tratar: o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária visitou, em 2009, os presídios de Viana e de Serra, no Espírito Santo. Segundo o relatório elaborado, o que se encontrou na Casa de Custódia de Viana foi: revistas íntimas generalizadas e feitas por funcionários despreparados, inexistência de assistência religiosa, limitações a atendimento jurídico de advogados particulares, inexistência de assistência jurídica gratuita, superlotação insuportável (1.177 detentos para 370 vagas!), edifícios deteriorados, inexistência de eletricidade e de chuveiros, fornecimento de água somente ao final do dia, colônias de moscas, mosquitos, insetos e ratos, larvas, inexistência de trabalho, denúncias de presos esquartejados, muitas e recorrentes denúncias de tortura, cápsulas de revólveres e fuzis disparados contra os presos que não quiseram colaborar com a limpeza dos pavilhões na véspera da visita do Conselho. Já no presídio de Novo Horizonte, na cidade de Serra, o Conselho relatou a existência de containers que o Estado chamou de presídios. Temperaturas que chegavam a 45 graus no verão, superlotação, inexistência de médicos, advogados e defensoria. Um rio de esgoto sob as celas, de até 40 centímetros de profundidade, com todos os restos e sujeiras que se possa imaginar. Torturas e até mesmo um preso com um tiro no olho! O relatório, um relato chocante, atinge seu ápice com a seguinte afirmação: “chegamos à conclusão que nunca havíamos visto tão alto grau de degradação. Poucas vezes na história, seres humanos foram submetidos a tanto desrespeito” [9].

A situação do sistema penitenciário brasileiro é tão dramática que Corte Interamericana de Direitos Humanos foi obrigada a intervir no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão. O órgão internacional verificou “situação de risco extremamente grave e urgente e o caráter irreparável do possível dano aos direitos à vida e à integridade pessoal dos internos do Complexo de Pedrinhas e das pessoas ali presentes. Em particular, a extrema gravidade da situação de risco deriva da informação fornecida, que indica que haveriam ocorrido dezenas de homicídios e diversos atos de violência, tais como rebeliões, agressões entre internos e por parte de funcionários contra internos, ameaças de morte, supostos atos de tortura e tratamentos cruéis, reiteradas tentativas de fuga, atendimento inadequado à doenças contagiosas” [10].

A comida é outro fator historicamente degradante. Os relatos passam do meramente aceitável, até a insalubridade, inadequação; são preparados por empresas terceirizadas que não têm interesse em servir comida de qualidade, mas, ao contrário, economizar, maximizando os lucros. Enfim, “não há, em território nacional modelos prisionais que de fato respeitem os direitos humanos das pessoas encarceradas, nos quais a alimentação seja ofertada de forma excelente” [11].

Os tratamentos desumanos ultrapassam as pessoas dos próprios presos e se derramam sobre seus familiares. São longas viagens, noites em claro para conseguir lugares nas filas de visitas, acampamentos em calçadas, abusos das autoridades penitenciárias, imposição de padronização de roupa, absoluta falta de informação, portas batidas na cara, etc. Segue­se ignorando os avisos de que o sistema prisional está deturpado. Mais um exemplo: a doutrina jurídica aponta, há anos, a inconstitucionalidade da revista vexatória feita em familiares de presos durante as visitas [12]. Mas foram anos até a Lei Estadual no 15.552, agora vigente em São Paulo, que proíbe as revistas desnudas, com agachamentos e saltos e exames invasivos. Entre outras coisas, a Lei determina que seja respeitada a dignidade da pessoa humana, como manda a Constituição. Ora, é difícil acreditar: anos fizeram­se necessários para que se chegasse ao consenso legal de que existem formas melhores de coibir a entrada de materiais ilegais em presídios do que obrigar um infindável número de pessoas (entre elas, esposas, mães e avós de presos) a fazer agachamentos e polichinelos pelados. Mesmo assim, como não poderia deixar de ser, há relatos de que a Lei paulista não vem sendo cumprida, e as revistas humilhantes e ineficientes continuam [13]. Evidentemente, não são meros boatos ou alegações infundadas – o Judiciário paulista já se viu instado a intervir para fazer valer a Lei que não estava sendo aplicada [14].

Mas não é só. Não bastasse o fato de as prisões estarem em completo descompasso com as previsões legais (por todos os motivos acima, além de muitos, muitos mais), deve­se apontar ainda a gravíssima inexistência de vagas! O sistema carcerário está sobrecarregado de tal maneira que é impossível cogitar­se de mais prisões. Segundo as estatísticas do Ministério da Justiça, no início de 2013, o Brasil contabilizava 310.687 vagas prisionais mas tinha quase o dobro de presos (513.713 presos). Eram, à época, 218.242 presos em regime fechado para 158.966 vagas respectivas no sistema penitenciário [15]. Em São Paulo, segundo as informações da Secretaria de Administração Penitenciária, existe uma população carcerária de 206.541 indivíduos em um sistema que conta com apenas 120.270 vagas prisionais. Trata­se de uma população 71.73% maior do que a capacidade comportada pelo sistema.

Segundo o CNJ [16], atualmente, o déficit de vagas é de mais de 300 mil. Outro dado a ser considerado é que existem, também, 373.991 mandados de prisão em aberto. Ou seja, caso os procurados fossem presos, o total de presos do Brasil ultrapassaria um milhão de pessoas (1.085.454 pessoas).

Teríamos, nessa situação, um déficit de 728.235 vagas em nosso país.

A consequência direta disso, além da óbvia violação dos direitos mais comezinhos, é a incapacidade do poder público de lidar com essa quantidade de presos.

Por exemplo, muitos magistrados determinam a realização de exame criminológico sem saber que não há profissionais para realizar referido exame. Ou seja, o preso fica parado esperando um exame criminológico que nunca se realiza!

Outro exemplo: já com pedido de progressão deferido, um preso com direito a semiaberto chega a aguardar até 6 meses no fechado por conta da ausência de vagas! Há relatos inclusive de processos de execução perdidos ou abandonados por meses…

A verdade é que as varas de execuções criminais estão absolutamente falidas. Qualquer profissional ligado ao cumprimento das execuções criminais pode atestar que o tratamento jurídico dado aos processos de execução é digno de troça; seja pelo excesso de trabalho, que impede qualquer sombra de agilidade nas respostas jurisdicionais, seja pelo mero descaso com o cidadão que está cumprindo pena.

Beira o ridículo o descumprimento da Lei pelas varas de execução criminais. Isso não é nada menos do que um atestado de absoluta falência estatal: o poder público não consegue fazer cumprir as Leis.

Assim, se por um lado o Estado não tem o direito de empilhar as pessoas em vagas que não existem, criando verdadeiros infernos que contrariam Leis, a Constituição, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e o próprio bom senso; por outro, o excesso de população carcerária tem impactos práticos de outra ordem: o sistema judiciário, assim como as prisões, está afogado em trabalho, e é incapaz de lidar com toda essa massa.

Assim, retorna­se ao questionamento inicial. Aqueles que estão clamando por mais prisões não sabem do que estão falando. Estão fechando os olhos para o verdadeiro estado das prisões e das varas de execuções de nosso país. Não são questões separadas, e não podem ser tratadas separadamente.

Obviamente, ao aplicar tratamento desumano, ao desrespeitar as normas que regem a execução penal (seja pela desobediência direta às Leis, seja por uma prestação jurisdicional insuportavelmente morosa), não se está fazendo qualquer favor à sociedade. Pelo contrário, o que isso consegue é acentuar os efeitos negativos da prisão, reforçando o encarceramento como fator criminógeno.

O resultado é que tratamos nossos prisioneiros com crueldade, e mesmo assim esperamos que, com isso, eles ajam com menos crueldade. Isolamos em grupos onde impera uma sociedade particular com regras que não são as mesmas de nossa sociedade, esperando que eles aprendam a agir em nossa sociedade. Colocamos em contato diário e obrigatório com outros criminosos, achando que com isso criaremos um cidadão responsável e ressocializado. Aplicamos a Lei na hora de prendê­los, e nos recusamos expressamente a aplicar as Leis que deveriam protegê­los. Criamos inimigos da sociedade, transformando tudo em um jogo de “eles” contra “nós”. E a tudo isso o “cidadão de bem”, chocado com o alto índice de criminalidade, aplaude, sem se dar conta de que é, ele mesmo, uma grande vítima do sistema que incentiva.

A conclusão é: o interesse de todos há de ser diminuir o número de presos, e não aumentar. A prisão só pode ser decretada se não houver nenhuma outra saída. Como tantos já disseram, nada mais é do que um mal necessário. A presunção de inocência deve prevalecer até o último recurso cabível no processo de conhecimento. Tudo isso porque a prisão é um mal, para o preso e para a sociedade, e devemos utilizar todos os filtros possíveis para verificar sua absoluta necessidade.

Estes que estão a pregar mais prisões não sabem do que estão falando. Estão imaginando uma prisão que não existe (e nunca existiu), ou para criar uma falsa sensação de segurança, ou para acabar com uma tal “sensação de impunidade” ­ como se isso tivesse alguma importância, comparado ao efeito criminógeno real que a prisão vem demonstrando ter.

Ao pedir mais prisões, estão cerrando os olhos para a realidade e insistindo em aumentar a dosagem do remédio errado, enquanto o paciente piora a cada dia.

[1] “Associação dos Juízes Federais apresenta medidas contra a impunidade e pela efetividade da justiça”. Disponível em <http://www.ajufe.org/imprensa/noticias/associacao­dos­juizes­federais­apresenta­ medidas­contra­a­impunidade­e­pela­efetividade­da­justica/>. Acesso em 14/05/2015, 21:05hs.
[2] Disponível em <http://www.ajufe.org/arquivos/downloads/ao­14­enccla­sergio­moro­16071019.pdf>. Acesso em 14/05/2015, 21:07hs.

[3] “Agenda propositiva – Ajufe reestrutura anteprojeto de lei contra a impunidade”. Disponível em <http://www.ajufe.org/imprensa/noticias/agenda­propositiva­ajufe­reestrutura­anteprojeto­de­lei­contra­ a­impunidade/>. Acesso em 14/05/2015, 21:10hs.

[4] Disponível em <http://www.ajufe.org/arquivos/downloads/proposta­da­ajufe­alteracao­de­recursos­ 1504­1­2161097.pdf/>. Acesso em 14/05/2015, 21:12hs.

[5] O que, por si só, já é digno de crítica. Segundo o projeto “Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas corpus nos Tribunais Superiores” feito pela FGV DIREITO RIO e coordenado por Thiago Bottino, entre 2008 e 2012 foram concedidos 27,86% dos HCs impetrados no STJ, e 8,27% dos HCs impetrados no STF. Some­se às concessões o dado de que, dentre os HCs não conhecidos (19.98% no STJ e 37,78% no STF), chegou a haver concessão da ordem ex­officio em 18,1% dos casos no STJ, e, em 4,3% dos casos no STF. Em áreas específicas, como em casos de roubo e fixação de regime inicial, a concessão dos HCs foi de 62%. Essa alta porcentagem de concessões (às quais, aliás, para fins desta discussão, há que se somar também decisões de provimento de Recursos Especiais e Extraordinários) indica que, ao contrário do que a Ajufe quer fazer crer, uma grande parte das decisões de segundo grau ainda contém ilegalidades a serem sanadas, demonstrando a irrazoabilidade de antecipar a medida extrema para antes do trânsito em julgado da condenação.

[6] http://www.justica.gov.br/portal/ministerio­da­justica/home.htm (Depen Execução Penal » Execução Penal » Sistema Prisional). Acesso em: 16 de julho de 2013, 04:10 hs.
[7] “Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil” – disponível em http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. Acesso em 20 de maio de 2015, 16:13 hs.

[8] Segundo o já citado “Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil” do CNJ, dentro das instituições prisionais brasileiras, 41% dos presos são presos provisórios – ou seja, sem condenação transitada em julgado. Em Sergipe, o Estado mais alarmante, essa porcentagem é de 76%.

[9] Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária ­ Relatório de visita ao Espírito Santo de 2009. Disponível em http://portal.mj.gov.br/cnpcp/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID= {9846E847­3594­4E9D­BF9D­251E59771475}&ServiceInstUID={4AB01622­7C49­420B­9F76­ 15A4137F1CCD} – Acesso em 20 de maio de 2015, 18:14 hs.

[10] Corte Interamericana de Direitos Humanos – Resolução de 14 de novembro de 2014 – San José, Costa Rica – Assunto do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, São Luís/MA. Inteiro teor disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_01_por.pdf>. Acesso em 15/05/2015, 00:09hs.

[11] RUDNICKI, Dani. A política penitenciária (brasileira) percebida pelo viés da alimentação da pessoa encarcerada in Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 21, vol. 102, maio­junho 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 356.

[12] A título exemplificativo: DUTRA, Yuri Frederico. A inconstitucionalidade da revista íntima realizada em familiares de presos, a segurança prisional e o princípio da dignidade da pessoa humana”, in Novos estudos jurídicos, vol. 13, n. 2, jul­dez 2008. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, p.93­104.

[13] Veja­se relato veiculado pelo site www.ig.com.br: “Depois de oito meses presídios de sp descumprem lei que proíbe revista íntima”. Disponível em < http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2015­04­ 26/depois­de­oito­meses­presidios­de­sp­descumprem­lei­que­proibe­revista­intima.html >. Acesso em 15/05/2015, 00:50 hs.

[14] 1a Vara do Foro Distrital de Itirapina, Comarca de Rio Claro, Mandado de Segurança no 0000266­ 08.2015.8.26.0283, j. 11.03.2015, public. 13.03.2015.

[15] Ministério da Justiça ­ Infopen

[16] “Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil” – disponível em http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. Acesso em 20 de maio de 2015, 16:13 hs.

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