Conrado Almeida Corrêa Gontijo
Associado do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 02 de novembro de 2016.
Logo que recebi o convite para redigir, para a Coluna do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) no JOTA, um artigo sobre a “Medida 1” de combate à corrupção proposta pelo Ministério Público Federal, entrevistei conhecidos que haviam, como mais outros 2 milhões de brasileiros, país afora, subscrito o polêmico pacote de 10 Medidas. Referido pacote, redigido pelos Procuradores da República especialmente designados para integrar a força-tarefa da Operação Lava-jato em Curitiba – PR[1], tem como desiderato tornar mais eficiente o combate ao fenômeno da corrupção, que, sem margem a dúvidas, é um importante obstáculo para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro: dessas informações, todos os meus entrevistados dispunham.
Todavia, apesar de terem assinado, nas ruas de São Paulo, documentos de apoio ao pacote, nenhum deles sabia que a “Medida 1”, ao contrário do que o nome sugere, é integrada por 04 (quatro) Anteprojetos de Lei. Além disso, até com certo constrangimento, admitiram que não sabiam precisar o conceito de accountability, não tinham noção do que seriam testes de integridade, desconheciam a informação de que o Ministério Público Federal defendia o direcionamento de recursos para a promoção demarketing institucional, tampouco puderam explicar como seria regulamentado o artigo 5º, inciso XIV da Constituição Federal, no tocante aos chamados informantes confidenciais, temas tratados nos anteprojetos.
Tal circunstância revela, ao contrário do que se tem divulgado, que grande parte das pessoas que assinaram os abaixo-assinados criados para conferir legitimidade popular aos Anteprojetos de Lei não conhecem o seu conteúdo. Tampouco sabem que a estratégia de marketingdesenvolvida para propagar as “10 Medidas” ocultou, por via do discurso fácil do combate à corrupção, quantas e quais medidas seriam essas: o conteúdo do “livro” de propostas criado pela Procuradoria da República foi julgado, pelos signatários dos documentos enviados ao Congresso, apenas pela sua “capa”.
Nessa esteira, se a coleta das 2 milhões de assinaturas nas ruas foi feita sem que as pessoas efetivamente conhecessem o teor do documento que assinavam, não se pode admitir que, no processo legislativo, a discussão sobre a substância das “10 Medidas” seja feita de forma tão superficial, principalmente, porque a sua aprovação representará uma compressão significativa de direitos e garantias fundamentais, arduamente conquistados, não a privilegiar corruptos, mas para assegurar, a todos os membros sociedade, a preservação da dignidade individual.
Destaque-se, no que toca aos Anteprojetos de Lei que compõem a “Medida 1” do pacote proposto pelo Ministério Público Federal, que dois deles, inequivocamente, apresentam-se em direta contrariedade ao postulado constitucional do devido processo legal e a qualquer concepção que se tenha de Estado Democrático de Direito: trata-se das ideias de criação dos chamados testes de integridade, e da autorização, no âmbito do processo penal, da utilização de informantes confidenciais, sem rosto.
Ao justificar a adoção de tais medidas, os responsáveis pela redação dos anteprojetos de leis respectivos, valendo-se de expressões vagas, afirmam que elas mirariam a criação de “novo mecanismo voltado à defesa da moralidade pública”. Olvidam, entretanto, de expor as consequências graves de adoção, no âmbito da sistemática jurídica nacional, de institutos por nós desconhecidos, e – é preciso reconhecer – utilizados em nações que ostentam características muito diversas da nossa.
O teste de integridade, consta das justificativas criadas pelo Ministério Público para motivar a aprovação do Anteprojeto de Lei, criaria, “preventivamente, a percepção de que todo o trabalho do agente público”estaria sob permanente vigilância. Com efeito, à luz do disposto nos documentos encaminhados ao Congresso Nacional, “os testes de integridade consistirão na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública”, a ser realizada, principalmente, pelos “órgãos policiais”.
Ou seja, desconsiderando as enormes dificuldades existentes no Brasil com a corrupção das polícias judiciária e militar, o Ministério Público Federal pretende conferir-lhes ainda mais poder. E, é fundamental destacar, os testes de integridade, encenações fictícias realizadas pelos agentes do Estado, sequer dependeriam de autorização judicial: eliminando a possibilidade de controle jurisdicional das simulações, o Anteprojeto de Lei, não obstante as suas disposições sejam fonte de relativização de direitos fundamentais, busca diminuir a importância do Poder Judiciário, inflando em demasia o poder do Ministério Público.
A demonstrar essa assertiva, veja-se que “os órgãos que forem executar os testes de integridade darão ciência prévia ao Ministério Público (…), podendo o Ministério Público recomendar medidas complementares” (artigo 6), “os órgãos de fiscalização e controle divulgarão, anualmente, estatísticas relacionadas à execução dos testes de integridade (…), à qual poderá ter acesso o Ministério Público” (artigo 7º) etc.
Tais previsões, é fácil perceber, vão na contramão de todas as demais disposições normativas existentes no ordenamento jurídico brasileiro sobre os meios invasivos de obtenção probatória. Por intermédio delas, pretende o Ministério Público Federal ser o Senhor máximo do aparato punitivo estatal, esquecendo-se do importante papel de controle que deve, sempre, ser exercido pelo Poder Judiciário, nos casos de interceptação telefônica, infiltração de agentes, quebra de sigilo bancário etc., principalmente, em tempos nos quais representantes do Ministério Público chegam ao absurdo de defender que as prisões processuais sejam empregadas para extrair a verdade – diga-se, confissão – dos investigados.
Não é demais destacar, ainda, que é consolidado o entendimento jurisprudencial no sentido de que a comprovação da “ocorrência de flagrante preparado constitui situação apta a ensejar a nulidade radical do processo penal”[2], circunstância que deu ensejo, inclusive, à edição da Súmula 145 pelo Supremo Tribunal Federal, verbis: “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Assim, pergunta-se: poderá o Ministério Público Federal realizar testes de integridade, verdadeiros flagrantes preparados, mesmo sabendo que tal medida inviabilizará a posterior responsabilização criminal do funcionário público?
Mais importante do que isso é verificar que, caso seja incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, o referido projeto estimulará a deslealdade estatal institucionalizada, sob a justificativa de que ela seria ferramenta importante para coibir a desonestidade dos agentes públicos. Parafraseando Hassemer, será permitido ao Estado empregar, no exercício das funções que a sociedade a ele outorga, métodos de atuação equiparáveis àqueles empregados pelos criminosos? Parece-nos possível, para esses questionamentos, apenas uma resposta: evidentemente, não.
Vale pontuar, nessa esteira, que procedimentos análogos aos sugeridos pelo Ministério Público Federal, que pretende institucionalizar a atuação enganosa do Estado, também foram descritos no Manual da Inquisição, datado de 1525 e criado para disciplinar as perseguições dos Tribunais do Santo Ofício[3]:
O terceiro, quando as declarações das testemunhas não apresentam provas, porém apresentam fortes indícios e o interrogado continua negando, o inquisidor fará com que o acusado compareça e lhe perguntará coisas vagas e quando negar o acusado qualquer coisa (…) folheará o juiz os autos de onde estão os interrogatórios anteriores, dizendo: “está claro que você não está declarando a verdade, não dissimule mais” (…). Também pode o inquisidor folhear um documento qualquer e quando o réu negar alguma coisa, o inquisidor se fingirá de pasmo (…). Dentro de todo este processo o inquisidor sempre fugirá de explicar as circunstâncias que possa o acusado suspeitar que ele não sabe de nada, isso tudo sem sair dos termos gerais (…). No entanto, existem ardis de duas espécies, uma com finalidade maléfica e que é ilícita, e outra saudável e prudente, usada para se averiguar a verdade – esta é meritória.
Destarte, consideradas as balizas definidas pelo legislador originário, e as características elementares do Estado Democrático de Direito brasileiro, os testes de integridade previstos no pacote das 10 Medidas anticorrupção do Ministério Público Federal devem, necessariamente, ser reprovados nos testes de constitucionalidade.
Não é outra a conclusão a que se deve chegar, a partir da análise técnica das disposições inseridas no Anteprojeto de Lei que traz, sob o disfarce que é o seu título (sigilo da fonte), a possibilidade de que, no âmbito processual penal, sejam admitidas declarações prestadas por informantes confidenciais. Segundo previsão do modelo sugerido pelo Ministério Público Federal, “poderá o Ministério Público resguardar o sigilo da fonte de informação que deu causa à investigação relacionada à prática de ato de corrupção, quando se tratar de medida essencial à obtenção dos dados ou à incolumidade do noticiante ou por outra razão de relevante interesse público”.
Exatamente nessa esteira, o Manual da Inquisição determinava que:
Os nomes das testemunhas não se podem publicar, nem comunicar ao acusado, sempre que resulte algum risco aos acusadores e quase sempre existe este risco, porque se não é temível o acusado por sua riqueza, sua nobreza ou por sua parentela, é por sua própria perversidade ou pela dos seus cúmplices, gente, na maioria das vezes, arrojada, que nada tem a perder e se vinga quando pode das testemunhas (…). Quando efetivamente não correm perigo nenhum, os acusadores podem comunicar ao réu o nome das testemunhas que declararam contra ele.
Tal referência já deveria ser suficiente para que, com mais cautela, fosse discutido o tema dos informantes sem rosto. Entretanto, para reforçar a demonstração da que é absurda a tentativa de prever depoimentos anônimos, vale trazer à colação trechos de obras de Scarance, Gomes Filho e Badaró, estudiosos essenciais do nosso processo penal:
Não pode ser aceito o depoimento anônimo, pois impede ao acusado e ao seu defensor saber quem contribuiu para a sua condenação, não podendo, assim, apontar fatos que desmereceriam o depoimento: inimizade, vingança, falsidade[4].
Mesmo no caso em que a testemunha esteja presente, sendo visualmente identificada, o desconhecimento de seus dados de qualificação poderá prejudicar o exercício do contraditório. Por exemplo, não será possível verificar eventual grau de parentesco com as partes do processo, o que poderia colocar sob suspeita seu depoimento. Além disso, ignorando-se sua identidade, sua residência e seu local de trabalho, fica-se privado de informações sem as quais podem restar impossibilitadas de verificação e confrontação de certas afirmações, como, por exemplo, o haver a testemunha presenciado o delito quando ia para o trabalho, ou quando retornava para a residência.[5]
Verifica-se, com base nas considerações trazidas acima, que as ideias inseridas pelo Ministério Público Federal no pacote das “10 Medidas”, especialmente aquelas versantes a respeito dos testes de integridade e dosinformantes anônimos, não são novas na História. Ao contrário, já eram empregadas em larga escala pelos Tribunais do Santo Ofício nos Séculos XV e XIV, conforme elucidam os escritos de Nicolau Eymerico.
Nesse cenário, cumpre-nos a todos, cidadãos brasileiros, escolher tratar os sujeitos submetidos ao poder punitivo estatal com respeito à dignidade humana, passados já quase 500 (quinhentos) anos desde a criação do Manual dos Inquisidores, ou ressuscitar os seus ideais, por via da inclusão, em nossa sistemática processual penal, dos testes de integridadee dos informantes anônimos, para viabilizar mais eficiência na punição dos corruptos, com métodos idênticos aos aplicados em face dos hereges de outrora.
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[1] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/historico
[2] Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 84.723/SP, 2ª Turma, j 21.02.2016.
[3] Nicoleu Eymerico. Manual da Inquisição. Juruá: Curitiba, 2009, p. 24.
[4] Antonio Scarance Fernandes. Equilíbrio entre eficiência, garantismo e crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. RT. Jan-Fev 2008, p. 255.
[5] Antonio Magalhães Gomes Filho, Gustavo Henrique Righi Ivanhy Badaró. Prova e Sucedâneos de Prova no Processo Penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, RT, 2007.