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Márcio, ou a alegria da amizade prazerosa e desinteressadaMárcio, ou a alegria da amizade prazerosa e desinteressada

Arnaldo Malheiros Filho

Advogado criminalista e presidente do Conselho Deliberativo do IDDD

 

Texto originalmente publicado no site da Revista Consultor Júridico, em 22 de novembro de 2014.

 

A perda de um amigo me deixa arrasado e, a despeito ou por causa das lágrimas, me faz voltar ao passado.

 

Na Rua Conde do Pinhal, bem ao lado do Fórum João Mendes, há um predinho que tinha no térreo a Livraria Revista dos Tribunais. Na virada dos anos 60 para os 70 do terceiro ao último andar (o oitavo?) eram os escritórios de uma única empresa; o primeiro alojava seu refeitório e cozinha. O segundo andar tinha três inquilinos: A redação e revisão da Revista dos Tribunais, onde eu então trabalhava, um ocupante do qual não me lembro, e o escritório de um advogado narigudo, com quem vez ou outra cruzava no elevador e trocávamos as boas.

 

Em 72 formei-me em direito e em 73 comecei a advogar no escritório de meu professor da profissão, José Carlos Dias.

 

No Fórum Criminal havia a “praça da alegria”: Kleber de Menezes Dória, advogado de muitos talentos e poucos clientes, em razão de seu gênio difícil, chegava cedo, pouco depois do meio dia e sentava-se em um banco de corredor; aí vinha um advogado, mais outro, mais outro e logo estava reunido um grupo grande a falar mal da vida alheia, desancar os juízes e especular sobre quem come quem.

 

Sempre estava ali o narigudo da Conde do Pinhal. Ele era advogado da CESP, para a qual trabalhara em Bauru cuidando de processos de desapropriação, mas conseguiu vir para São Paulo e ser cedido à Procuradoria de Assistência Judiciária, para defender réus pobres no Júri.

 

A empatia surgiu logo de início. Nasceu ali uma amizade como as amizades devem ser, desinteressada, apenas com o prazer da convivência.

 

Da praça da alegria e de outro ponto de encontro delicioso da época, que era o gabinete do presidente do 1º Tribunal do Júri, Edegardo Maranhão, passamos ao Giggeto, ao Mon Ami e outros botecos da época.

 

A ditadura militar iria baixar um novo Código de Processo Penal, baseado em anteprojeto do grande Frederico Marques e a OAB resolveu levar às subseções do interior palestras sobre o que seria o novo regramento, que nunca vigeu. Eram quatro palestras, duas na sexta à noite, duas na manhã de sábado. A equipe tinha como fixos Márcio, José Carlos Dias e eu; o quarto membro era variável e o mais assíduo era Miguel Reale Jr. Minha proximidade com Márcio se adensou.

 

Comecei a admirar seus talentos profissionais. O primeiro deles era o acolhimento ao cliente, cuja camisa vestia. Só para dar um exemplo recente, num momento em que seu cliente Roger Abdelmassih era execrado por todos, Márcio foi seu padrinho de casamento, o que nada tem a ver com a atividade profissional, mas tudo a ver com o acolhimento.

 

O segundo motivo de admiração era que, numa época quando muitos tribunos do júri eram ainda tonitroantes, Márcio falava de um jeito intimista, como que conversando com os jurados e não discursando para eles, desenvolvendo uma argumentação quase irresistível.

 

E, sobretudo, um raciocínio estratégico invulgar. Ele elaborava uma defesa prévia pensando em como se beneficiar num recurso ao STF, anos depois.

 

Essas qualidades, pensamento estratégico, capacidade de argumentação e de acolhimento fizeram dele uma figura política notável, conquanto não partidária nem eleitoral.

 

E assim, a despeito de divergências, nossa amizade vicejou.

 

Embora na mesma profissão e bem mais novo que ele, não posso dizer que fui seu discípulo, não por mim, mas por ele. É que ele sempre me tratou como um igual, e sua humildade ia ao ponto de me procurar dizendo “preciso de um conselho”. Quem sou eu? Mas era assim que ele se relacionava comigo. Chegamos a atuar juntos em algumas causas, ora defendendo acusados no mesmo processo, ora repartindo o trabalho de uma defesa, mas nunca fomos além disso.

 

Não se contentava só com a atividade profissional, dedicando-se a causas de interesse social, tendo sido fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o IDDD que se afirmou em seus 14 anos de existência e do Instituto Innovare, que dá um prêmio que se tornou icônico a melhorias na prestação da justiça.

 

Ele sempre esteve a meu lado quando eu precisei. Acho que retribuí, inclusive tendo a honra de ter sido constituído por ele como seu advogado.

 

Trabalhador incansável, algumas vezes ele me falou que pretendia parar, ao que eu respondi que era delírio, pois ele jamais conseguiria. E não conseguiu, trabalhou até o último dia.

 

Ainda nesta quarta-feira (19/11), em seu quarto de hospital, fiz brincadeiras e ele riu, alegre, e estendeu sua mão para segurar a minha.

 

Resta para mim um enorme vazio, um buraco em minha vida que não será preenchido. Não fui seu discípulo, não fui seu parceiro, fui muito mais que isso: seu amigo, numa amizade prazerosa e desinteressada, como as verdadeiras amizades são. “Amigo é coisa prá se guardar do lado esquerdo do peito”. É isso que aumenta a minha dor.

 

Arnaldo Malheiros Filho

Advogado criminalista e presidente do Conselho Deliberativo do IDDD

 

Texto originalmente publicado no site da Revista Consultor Júridico, em 22 de novembro de 2014.

 

A perda de um amigo me deixa arrasado e, a despeito ou por causa das lágrimas, me faz voltar ao passado.

 

Na Rua Conde do Pinhal, bem ao lado do Fórum João Mendes, há um predinho que tinha no térreo a Livraria Revista dos Tribunais. Na virada dos anos 60 para os 70 do terceiro ao último andar (o oitavo?) eram os escritórios de uma única empresa; o primeiro alojava seu refeitório e cozinha. O segundo andar tinha três inquilinos: A redação e revisão da Revista dos Tribunais, onde eu então trabalhava, um ocupante do qual não me lembro, e o escritório de um advogado narigudo, com quem vez ou outra cruzava no elevador e trocávamos as boas.

 

Em 72 formei-me em direito e em 73 comecei a advogar no escritório de meu professor da profissão, José Carlos Dias.

 

No Fórum Criminal havia a “praça da alegria”: Kleber de Menezes Dória, advogado de muitos talentos e poucos clientes, em razão de seu gênio difícil, chegava cedo, pouco depois do meio dia e sentava-se em um banco de corredor; aí vinha um advogado, mais outro, mais outro e logo estava reunido um grupo grande a falar mal da vida alheia, desancar os juízes e especular sobre quem come quem.

 

Sempre estava ali o narigudo da Conde do Pinhal. Ele era advogado da CESP, para a qual trabalhara em Bauru cuidando de processos de desapropriação, mas conseguiu vir para São Paulo e ser cedido à Procuradoria de Assistência Judiciária, para defender réus pobres no Júri.

 

A empatia surgiu logo de início. Nasceu ali uma amizade como as amizades devem ser, desinteressada, apenas com o prazer da convivência.

 

Da praça da alegria e de outro ponto de encontro delicioso da época, que era o gabinete do presidente do 1º Tribunal do Júri, Edegardo Maranhão, passamos ao Giggeto, ao Mon Ami e outros botecos da época.

 

A ditadura militar iria baixar um novo Código de Processo Penal, baseado em anteprojeto do grande Frederico Marques e a OAB resolveu levar às subseções do interior palestras sobre o que seria o novo regramento, que nunca vigeu. Eram quatro palestras, duas na sexta à noite, duas na manhã de sábado. A equipe tinha como fixos Márcio, José Carlos Dias e eu; o quarto membro era variável e o mais assíduo era Miguel Reale Jr. Minha proximidade com Márcio se adensou.

 

Comecei a admirar seus talentos profissionais. O primeiro deles era o acolhimento ao cliente, cuja camisa vestia. Só para dar um exemplo recente, num momento em que seu cliente Roger Abdelmassih era execrado por todos, Márcio foi seu padrinho de casamento, o que nada tem a ver com a atividade profissional, mas tudo a ver com o acolhimento.

 

O segundo motivo de admiração era que, numa época quando muitos tribunos do júri eram ainda tonitroantes, Márcio falava de um jeito intimista, como que conversando com os jurados e não discursando para eles, desenvolvendo uma argumentação quase irresistível.

 

E, sobretudo, um raciocínio estratégico invulgar. Ele elaborava uma defesa prévia pensando em como se beneficiar num recurso ao STF, anos depois.

 

Essas qualidades, pensamento estratégico, capacidade de argumentação e de acolhimento fizeram dele uma figura política notável, conquanto não partidária nem eleitoral.

 

E assim, a despeito de divergências, nossa amizade vicejou.

 

Embora na mesma profissão e bem mais novo que ele, não posso dizer que fui seu discípulo, não por mim, mas por ele. É que ele sempre me tratou como um igual, e sua humildade ia ao ponto de me procurar dizendo “preciso de um conselho”. Quem sou eu? Mas era assim que ele se relacionava comigo. Chegamos a atuar juntos em algumas causas, ora defendendo acusados no mesmo processo, ora repartindo o trabalho de uma defesa, mas nunca fomos além disso.

 

Não se contentava só com a atividade profissional, dedicando-se a causas de interesse social, tendo sido fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o IDDD que se afirmou em seus 14 anos de existência e do Instituto Innovare, que dá um prêmio que se tornou icônico a melhorias na prestação da justiça.

 

Ele sempre esteve a meu lado quando eu precisei. Acho que retribuí, inclusive tendo a honra de ter sido constituído por ele como seu advogado.

 

Trabalhador incansável, algumas vezes ele me falou que pretendia parar, ao que eu respondi que era delírio, pois ele jamais conseguiria. E não conseguiu, trabalhou até o último dia.

 

Ainda nesta quarta-feira (19/11), em seu quarto de hospital, fiz brincadeiras e ele riu, alegre, e estendeu sua mão para segurar a minha.

 

Resta para mim um enorme vazio, um buraco em minha vida que não será preenchido. Não fui seu discípulo, não fui seu parceiro, fui muito mais que isso: seu amigo, numa amizade prazerosa e desinteressada, como as verdadeiras amizades são. “Amigo é coisa prá se guardar do lado esquerdo do peito”. É isso que aumenta a minha dor.

 

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