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Justiça por virtual cala denúncias de tortura, afirmam entidades à CIDH e ao STF

Organizações anti-tortura pedem que organismo internacional e Supremo sejam contra uso de videoconferências nas audiências de custódia

O uso de videoconferência nas audiências de custódia impede o combate à tortura. É o que afirmam entidades de direitos humanos que, nesta quarta-feira (30), participam no STF de um julgamento sobre o uso de procedimentos virtuais nesse tipo de sessão, durante a pandemia. O julgamento virtual extraordinário vai analisar uma liminar do ministro Nunes Marques que, atendendo a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros, autorizou, na segunda-feira (28), a realização de audiência de custódia de forma remota durante a crise sanitária – o que foi proibido pelo Congresso Nacional.

O julgamento começa no mesmo dia de uma audiência promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), às 15h, horário de Brasília, para debater o tema, com destaque para os efeitos da chamada justiça virtual sobre o direito de defesa e a integridade física de pessoas privadas de liberdade na região.

Parte das organizações de direitos humanos participa tanto da audiência quanto do julgamento no STF. Para seus representantes, que assinam um documento com denúncias enviado à CIDH, o fim das audiências de custódia presenciais – uma das principais ferramentas de contenção de abusos policiais – é, atualmente, um dos  maiores  obstáculos no combate à tortura no Brasil e na América Latina.

Antes da pandemia, a lei determinava que a pessoa presa fosse levada à presença de um juiz o mais rápido possível para análise tanto da legalidade da detenção quanto de eventuais sinais aparentes de maus-tratos – o que é impossível à distância, por uma tela de computador, sem contato visual com o corpo do custodiado. No Brasil, três meses após a pandemia ter sido declarada pela OMS, denúncias de tortura diminuíram 83%, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Uma pesquisa encomendada pela Associação para Prevenção da Tortura (APT), que cobriu 16 países ao longo de 30 anos, evidenciou que a apresentação da pessoa presa perante o magistrado, durante as primeiras horas da custódia policial, é a forma mais eficaz para prevenir e coibir a prática de tortura e maus-tratos, justamente no momento onde o risco de abusos e tortura é mais alto.

“A tela, a ausência física da defesa, e o fato de que, para a audiência virtual, a pessoa é mantida muitas vezes no ambiente policial ou do sistema prisional, afasta qualquer senso mínimo de segurança que a pessoa custodiada precisa ter para relatar eventual violência sofrida”, comenta Sylvia Dias, assessora jurídica e representante da APT no Brasil.

Na avaliação assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, Carolina Diniz, a justiça remota também reduz as chances de denúncias. “Na ausência de um ambiente seguro, é provável que nem mesmo o relato de violência venha à tona, prejudicando a responsabilização e o controle da atividade policial”, diz.

As entidades denunciam ainda o risco de que os procedimentos judiciais remotos passem de exceção pandêmica à regra. De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), de março a novembro de 2020, 19 Tribunais de Justiça do país determinaram a realização das audiências de custódia virtuais, em 12 deles a medida não estipula prazo de término.

“No minuto seguinte à votação no Senado que proibia o uso das videoconferências, surgiu um projeto de lei para regulamentá-las. O maior perigo é que as sessões remotas sigam após a emergência sanitária, como se não fossem um dos maiores retrocessos em termos de combate à tortura e entraves ao amplo exercício da defesa”, avalia o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Em Pernambuco, as audiências de custódia por videoconferência começaram desde o final de janeiro de 2021 e estão ocorrendo em delegacias. Segundo Maria Clara D’Ávila, advogada do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP), “Por exemplo, a ausência da presença física da Defensoria Pública nas delegacias fragiliza ainda mais o acesso à defesa nesse momento”.

As audiências de custódia, que deixaram de ser públicas no modo virtual, podem ser realizadas por videoconferência desde a resolução 357/2020 do CNJ. Hoje, há pelo menos dois projetos de lei tramitando no Congresso brasileiro para permitir em definitivo as sessões remotas. A virtualização também comprometeu a publicidade deste tipo de audiência em países como Bolívia e Equador.

“Antes de implementar, expandir e normalizar as audiências à distância, os Estados devem analisar cuidadosamente os problemas que já enfrentam no acesso à justiça”, alerta Isabel Roby, da sede latino-americana da Fair Trials, organização que também participa da audiência na CIDH.

As entidades chamam atenção para o fato de que não se sabe ainda quais os impactos de uma justiça penal feita remotamente. Não há, por exemplo, estudos sobre qual é o efeito das telas na percepção dos operadores de Direito, ou mesmo da aparição do custodiado em meio a um cenário de prisão para o princípio de presunção de inocência. Os problemas de comunicação que já existiam nas sessões presenciais tendem a aumentar. Segundo pesquisa feita em 2019 pelo IDDD, em SP, três em cada quatro custodiados saem da audiência sem sequer entender o que se passou.

Além de um informe sobre normalização e expansão da justiça virtual nestas diferentes realidades, as entidades cobram da CIDH normativas internacionais, principalmente, a respeito do uso de videoconferência nas audiências de custódia.

 

ADI 6841

O IDDD e mais seis organizações protocolaram ontem (29) pedido de ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6841, que discute mudanças na Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime). Foi no âmbito da ADI que, na segunda-feira (28), o ministro Kassio Nunes concedeu uma liminar que autoriza a realização de audiências de custódia por videoconferência, enquanto perdurar a pandemia da Covid-19. Agora o assunto vai ser votado pelo plenário do STF e os ministros terão até o dia primeiro de julho para publicar seus votos.

No pedido, as entidades ressaltam que a gravidade da pandemia não pode servir de motivo para invalidar o direito do preso à presença física do juiz nas audiências de custódia. É destacada, ainda, a imprescindibilidade da realização dessas audiências de forma presencial, para se respeitar “a garantia de obrigações internacionais assumidas pelo Brasil quanto à prevenção e o combate à tortura e aos direitos das pessoas privadas de liberdade de não serem submetidas à tortura ou a tratamento desumano, degradante ou cruel”.