Na segunda-feira (1º), o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) envia à Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) requerimento para participar do julgamento do caso “12.315 – Prieto & Tumbeiro vs. Argentina”, sobre duas prisões decorrentes de abordagens policiais, justificadas apenas por “atitude suspeita”.
Se condenado internacionalmente pelas duas prisões ocorridas há mais de duas décadas, o Estado argentino terá de rever em sua legislação o conceito de “atitude suspeita”, que hoje dá amplo respaldo a abordagens arbitrárias. A jurisprudência pode ser um passo importante para que seja alterada a noção de “fundada suspeita”, sua equivalente brasileira, e se exija também das autoridades policiais daqui a adoção de protocolos com critérios objetivos para a identificação de suspeitos criminais.
Compartilhando um passado marcado por regimes autoritários nos quais a atuação policial conviveu com poucos limites, o Brasil e a Argentina permitem que abordagens sejam feitas sem ordem judicial. Elas, no entanto, só são autorizadas mediante “fundada suspeita” ou “atitude suspeita”. O problema é que as leis brasileiras, assim como as argentinas, não especificam que fatos ou condutas seriam suficientes para que alguém seja abordado e tenha seus direitos à liberdade e à privacidade suspensos, mesmo que temporariamente. Nos dois países, a decisão sobre quem é ou não suspeito tem sido deixada inteiramente nas mãos dos agentes.
"Uma parte significativa das prisões no Brasil e em outros países da América Latina são efetuadas fora da lei. Os juízes que deveriam ser os primeiros a exigir que as detenções se dêem de acordo com o devido processo legal, acabam por simplesmente chancelá-las."
Nos EUA, onde a morte de George Floyd, um homem negro de 46 anos, durante uma abordagem acaba de reacender o debate sobre violência policial contra a população afro-americana, já existem protocolos para procedimentos como a busca pessoal. O caso Floyd vs. Nova Iorque (coincidentemente o mesmo sobrenome do homem morto pela polícia em Minnesota na semana passada), ficou famoso, em 2013, por começar com uma abordagem discriminatória e acabar com o procedimento julgado inconstitucional, além da exigência de que as autoridades estaduais adotassem protocolos para essas práticas de policiamento ostensivo.
No Brasil, a falta de critérios tem como consequência números massivos de abordagens. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública de SP, somente no estado, entre 2015 e 2019, foram realizadas quase 79 milhões de abordagens. No ano passado, a PM paulista fez mais de 15 milhões de procedimentos do tipo. É como se, no espaço de 365 dias, 1/3 dos habitantes do estado mais populoso do país tenha despertado a suspeita dos policiais, sem que nada de ilegal tenha sido encontrado com essas pessoas. Mas antes de generalizada, a suspeição se concentra em um perfil racial, etário, socioeconômico e de gênero específico: os homens jovens e negros.
“Uma parte significativa das prisões no Brasil e em outros países da América Latina são efetuadas fora da lei. Os juízes que deveriam ser os primeiros a exigir que as detenções se dêem de acordo com o devido processo legal, acabam por simplesmente chancelá-las”, critica o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD, que assina o pedido de habilitação do Instituto pela CIDH como amicus curiae ou amigo da corte: um terceiro desvinculado das partes encarregado de munir o tribunal com informações sobre temas implicados no julgamento.
ANO | QUANT. DE ABORDAGENS | PESSOAS PRESAS EM FLAGRANTE | % |
2015 | 16.930.538 | 133.045 | 0.785828 |
2016 | 14.497.069 | 138.710 | 0,956814 |
2017 | 17.007.111 | 133.670 | 0,785965 |
2018 | 15.171.354 | 127.808 | 0,84243 |
2019 | 15.100.187 | 125.304 | 0,829818 |
Dados: SSP/SP
Falta de transparência
A lei brasileira também não exige que policiais registrem dados detalhados sobre as abordagens realizadas. Não existem, portanto, mecanismos de transparência que permitam que algum dia seja corrigida a gigantesca margem de erro que esse tipo de procedimento ostenta atualmente. Testemunhos de policiais em processos penais revelam que as abordagens são motivadas por razões pouco objetivas como percepção de nervosismo, denúncia anônima ou o local em que o suspeito se encontrava.
Embora tanto as abordagens quanto o “faro” dos agentes na identificação de suspeitos de crimes sejam valorizados nas corporações, os dados existentes sugerem que, de 2015 a 2019, algo entre 0,2% e 1% das abordagens resultaram em prisão em flagrante, em São Paulo. Os dados são apenas comparações simples entre a quantidade de abordagens e a de prisões em flagrante, já que o Estado não publiciza registro detalhado desses procedimentos.
“Os números indicam que as abordagens têm sido feitas às cegas. De outro lado, se há resultados, desconhecemos quais são. É um problema brasileiro urgente, uma distorção no nosso sistema de Justiça criminal que precisa de correção imediata. Por isso nossa decisão foi incidir numa corte internacional, esperando um precedente favorável e quem sabe uma recomendação para a região”, ressalta Hugo Leonardo.
Se a Argentina for condenada na CIDH, o precedente internacional terá impacto tanto nos tribunais quanto na prática policial. Ambos fizeram do Brasil uma potência carcerária, a terceira do mundo, com mais de 766 mil pessoas atrás das grades. Os juízes terão de exigir evidências criminais mais robustas para condenar, do que apenas o testemunho do agente que efetuou a prisão. Já os policiais terão de passar a compartilhar com a sociedade os parâmetros a partir dos quais, não só as abordagens de rua são realizadas, mas também os critérios que dão origem à ações policiais com desfechos trágicos como os de João Pedro, 14, morto durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo e João Vitor, 18, também morto pela PM, na Cidade de Deus, zona Oeste do Rio, na última semana.