O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) foi admitido como amicus curiae (amigo da corte) no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na ação que discute o cancelamento ou revisão da Súmula 70, editada em 2003, cujo texto diz que “o fato da prova oral se restringir a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
A proposta de revisão da súmula é de iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e, em seu manifesto, o IDDD lembra da precariedade da qualidade das investigações criminais no Brasil, em especial, nos casos que envolvem a maior clientela dos processos criminais e, consequentemente, das prisões brasileiras: a população preta, pobre e vulnerável. “É imprescindível que o valor atribuído ao depoimento de policiais e sua aceitação como prova no processo penal, ao contrário do que se extrai da Súmula 70, sejam submetidos a análise criteriosa por parte do Poder Judiciário, garantindo-se que essas provas não sejam aceitas de maneira automática”, afirma Guilherme Carnelós, presidente do IDDD.
Para Carnelós, de modo geral, a fragilidade nos inquéritos com poucas evidências cria um ciclo com poucas garantias de defesa: o Ministério Público apresenta denúncia contra pessoas presumidamente inocentes e o Poder Judiciário, por sua vez, autoriza o início desses processos. “Na prática, os juízes dos casos criminais têm sido os policiais: são eles quem dizem se o fato aconteceu e são suas palavras que fundamentam a condenação. O Poder Judiciário dispensou-se da tarefa de dizer o direito ou de controlar a persecução penal. Sobrou-lhe apenas impor a sanção”, diz.
O documento analisa dados apresentados pela própria Defensoria e o coloca lado a lado com o estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no fim de 2023. Os dois levantamentos mostram o perfil similar das pessoas condenadas por tráfico de drogas apenas com o depoimento de policiais. “A partir do contexto fático e processual encontrado pela DPE-RJ e pelo IPEA – as pessoas condenadas não ostentam maus antecedentes e foram abordadas sozinhas, por policiais, com uma quantidade de droga capaz de ser transportada no bolso de uma calça – não é difícil perceber o risco potencial da chancela a flagrantes forjados”, diz o documento.
No sistema de justiça criminal brasileiro, a palavra de policial é considerada parte importante no processo. Para o IDDD, a Súmula 70 valoriza ainda mais essa palavra e pode provocar distorções jurídicas relevantes e potencialmente injustas, como a inversão do ônus da prova no processo e o desprezo pela presunção de inocência.
Em seu argumento apresentado ao Tribunal de Justiça, o IDDD aponta seu trabalho no projeto Prova Sob Suspeita, que tem como parte de seus pilares contribuir para o aprimoramento na produção e na análise de provas, com o objetivo de reduzir os riscos de decisões judiciais equivocadas e arbitrárias. O mesmo projeto mostra como a atuação policial no Brasil, principalmente nas abordagens, é marcada por arbitrariedade e racismo do agente de segurança, refletindo de forma direta no perfil da população carcerária brasileira.
Em seu requerimento, o IDDD pede a revogação do Verbete 70, indicando a orientação atual do Superior Tribunal de Justiça, de que nenhum depoimento, por si só, pode ser valorado como superior aos demais, e que deve ser a garantida a presunção de inocência, impondo ao Estado a obrigação de provar a acusação segundo um standard seguro, a partir da necessidade de corroboração mínima do depoimento do policial.