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Hugo Leonardo: “não interessa ao Estado uma prisão injusta sequer”

Em sustentação oral no STF, presidente do IDDD defendeu que “o processo penal não pode ser transformado em fetichismo midiático”; julgamento sobre prisão em segunda instância será retomado na semana que vem

Nesta quinta-feira (17) o STF (Supremo Tribunal Federal) iniciou o julgamento de três ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) sobre o artigo 283 do Código de processo penal. O relatório do ministro Marco Aurélio Mello estava pronto para julgamento desde 2017. O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) participa do caso como amicus curiae (amigo da corte). Este é um instrumento jurídico que permite apresentar aos ministros opiniões técnicas sobre os temas em discussão. 

Na sessão desta quinta, além dos autores das ações e da PGR (Procuradoria-Geral da República), todas as instituições habilitadas sustentaram seus argumentos diante do plenário. Em sua fala, o presidente do IDDD Hugo Leonardo recordou que a presunção de inocência está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto de São José da Costa Rica (a Convenção Americana de Direitos Humanos) e defendeu que não cabe ao STF ouvir o clamor das ruas, mas cumprir a Constituição. 

“Até parece que esse julgamento não permeia o direito penal; até parece que ignora o seletivismo penal; até parece que não vivemos em um país com 800 mil presos. Até parece que vivemos em um país que não tem mais de 50% de presos provisórios, sem culpa firmada em todas as instâncias da Justiça. É disso que se trata”, afirmou. 

Para o advogado, ainda, a discussão sobre prisão após condenação em segunda instância não deve ser pautada pelo número de pessoas impactadas, mas pela defesa do princípio da presunção de inocência. “Ninguém devolve um dia de prisão a um sujeito preso indevidamente. Não interessa ao Estado brasileiro uma prisão injusta sequer.” 

Os ministros também ouviram os representantes da Defensoria Pública da União, das defensorias do Rio de Janeiro e de São Paulo, do IBCCrim, da Conectas, da Abracrim, do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) e do IGP (Instituto de Garantias Penais). Também passaram pelo plenário os peticionários das ADCs: o partido Patriotas (antigo PEN), o PCdoB e o Conselho Federal da OAB. 

Veja algumas das falas:

“É preciso reconhecer que a restrição de direitos atinge em primeiro lugar e com muito mais força a população pobre, preta e periférica – haja vista que eu sou a única pessoa negra falando nessa tribuna. Esse debate tem sido pautado como se afetasse apenas aqueles que respondem por crimes de colarinho branco, mas o tema se endereça aos pretos, pobres e periféricos.” Silvia Souza, Conectas 

“Qualquer endurecimento penal que se dirija ao andar de cima atinge com maior vigor o andar de baixo. Não podemos esquecer que a liberdade é perdida em condições similares em condições medievais.” Gabriel Faria de Oliveira, Defensoria Pública da União

“A relativização no processo penal permitirá a relativização de outros direitos fundamentais. É uma porta que se abre e essa situação depois você não consegue retomar. O papel da Defensoria é alertar que a decisão tem destinatário certo.” Pedro Carriello, Defensoria Pública do Rio de Janeiro

“Estamos agravando e alimentando um tumor. Basta colocar uma pessoa atrás das grades para que ela nunca se recupere. Fosse o senso comum, a Justiça seria abolida e voltaríamos para o coliseu romano.” José Eduardo Cardozo, PCdoB

“Temos razões de sobra para garantir o controle de constitucionalidade do processo penal. O Brasil é um dos que mais prende antes do trânsito em julgado, mesmo quando vigorava o entendimento anterior.” Fabio Tofic Simantob, PCdoB

Histórico

Em 2009 o STF enfrentou o tema da execução provisória da pena no julgamento de um pedido de habeas corpus relatado pelo então ministro Eros Grau (HC 84.078/MG). Na ocasião, a Corte, por 7 a 4, decidiu pela inconstitucionalidade da execução antecipada da pena de modo que que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente poderia ser decretada a título cautelar.

Esse entendimento valeu até 2016. Em um caso de habeas corpus relatado pelo ministro Teori Zavascki (HC 126.292/SP) e julgado em fevereiro daquele ano, a Corte passou a admitir, por sete votos a quatro, a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da condenação.

Em outubro daquele mesmo ano, o STF deu início ao julgamento de duas ADCs, a 43 e a 44, que questionavam esse entendimento. A decisão foi apertada: por seis votos a cinco, a Corte determinou que não havia incompatibilidade entre a execução provisória da pena e o respeito ao artigo 283 do CPP. Foram vencidos os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Dias Toffoli.

Um dos ministros que votou pela manutenção da possibilidade de prisão após segunda instância foi o ministro Gilmar Mendes, que desde então reviu sua posição e tem concedido inúmeros habeas corpus para suspender prisões após segunda instância.

Em um Recurso Extraordinário com Agravo (964.246), também relatado por Zavascki e julgado em novembro de 2016, uma maioria de 6 a 4 decidiu, através do plenário virtual do Supremo, reafirmar a execução provisória da condenação, mesmo havendo a possibilidade de recurso a instâncias superiores. A ministra Rosa Weber não se manifestou no caso.

Mais recentemente, no habeas corpus 152.752 apresentado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e julgado em abril de 2018, a ministra reafirmou a posição manifestada por ela em 2016, no sentido da inconstitucionalidade da aplicação de pena antes do esgotamento dos recursos. Disse, entretanto, que o que estava em jogo era a aplicação do entendimento da Corte a um caso concreto e ajudou a formar maioria (com ressalvas) favorável à execução antecipada da pena.

Em dezembro de 2018, o ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso (ADC 54), expediu liminar determinando a soltura de todas as pessoas em execução provisória da pena. A medida não contemplava pessoas presas preventivamente – ou seja, excluía pessoas que, na visão dos juízes, poderiam oferecer risco à sociedade ou ao andamento do processo. A decisão monocrática de Marco Aurélio foi derrubada horas depois pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, em resposta a pedido da Procuradoria-Geral da República.

Sistema distorcido

Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de 2018, há mais 800 mil pessoas presas no país – esta é a terceira maior população prisional do mundo. Duas de cada cinco pessoas privadas de liberdade (40%) estão presas provisoriamente. Mais de 24% já foram condenados, mas ainda não esgotaram as possibilidades de recorrer da decisão. Em nota, o CNJ afirmou que uma decisão contrária ao atual entendimento impactaria, no máximo, apenas 4,8 mil pessoas presas. 

De acordo com pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que analisou quase 900 processos que chegaram ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), 49% dos habeas corpus favoreceram os réus, assim como 41% dos recursos especiais. Isso significa que os tribunais superiores atenuaram as penas impostas pelas instâncias inferiores ou absolveram os acusados em quase metade dos casos.

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