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Em três de cada quatro matérias sobre crime, acusação é o único lado ouvido pela imprensa, diz pesquisa

Estudo evidencia pressão por punição de suspeitos na cobertura jornalística sobre criminalidade e segurança pública

A cobertura jornalística sobre casos criminais e outros temas relacionados à segurança pública tem lado: o da acusação. Das matérias veiculadas na imprensa sobre a temática, 74% trazem apenas argumentos acusatórios, principalmente os da polícia (47,1%). Os dados são da pesquisa “Mídia, Sistema de Justiça Criminal e Encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas”, elaborada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e financiamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O estudo analisou 474 notícias de 2017 e 2018, extraídas de 63 veículos de informação de todas as regiões do país, divididas em 16 categorias de crimes. Também foram examinadas 681 sentenças judiciais produzidas em oito estados, referentes ao mesmo período, que fizessem menção à mídia. Além disso, realizaram-se 26 entrevistas com atores do sistema de justiça criminal (juízes, promotores, defensores públicos) e algumas das respectivas assessorias de imprensa.

O cruzamento entre as notícias e as sentenças mostrou a força do viés acusatório nas narrativas sobre crimes e expôs as influências mútuas entre a mídia e o sistema de justiça criminal, sobretudo, nos casos de reconhecimento de réus por vítimas e testemunhas após exibição em reportagens. Nestes, 86% das sentenças analisadas resultaram em condenações, sendo que, em 60% das decisões condenatórias, o reconhecimento foi o único elemento informativo. 

Nas sentenças examinadas, os pesquisadores notaram uma tendência de neutralizar ou ocultar a influência da imprensa sobre a Justiça. Os juízes evitaram reconhecer  o impacto do trabalho jornalístico em suas decisões mesmo quando a mídia informava o processo e matérias apareciam como provas. Isso ocorreu em casos de reconhecimento, nos quais a exibição de imagens dos acusados por reportagens levou vítimas ou testemunhas a identificar quem foi mostrado como culpado.

“O reconhecimento deve obedecer a um procedimento descrito pelo artigo 226 do Código Penal. De acordo com ele, a testemunha deve descrever o suspeito de antemão e depois distingui-lo de outras pessoas parecidas, enfileiradas. A exibição de uma única foto compromete o reconhecimento e validade da prova, além de ser hoje causa de inúmeras injustiças”, esclarece a advogada Flávia Rahal, representante do IDDD, uma das organizações responsáveis pelo estudo.

Insuficiência de fontes

Em relação ao conteúdo das matérias, 25% das notícias analisadas não mencionam quais fontes de informação foram ouvidas e em apenas 33% mais de uma entrevista aparece. A preponderância das vozes acusatórias tem reflexo nas posições das reportagens, que são mais alinhadas à acusação (57%). Dentre as notícias que assumiram explicitamente um posicionamento, as fontes de acusação foram escolhidas 16 vezes mais do que as de defesa. Nas notícias em que foram vistos elogios a alguma instituição envolvida (11,4% do total), as polícias foram enaltecidas em 48,2%.

O levantamento também observou a falta de reportagens que avaliam o contexto em que os fatos narrados se deram ou que vão atrás de respostas ao fenômeno da criminalidade. Cerca de 98% não abordam possíveis soluções a respeito de problemas como criminalidade e encarceramento em massa. Segundo os dados, as matérias são majoritariamente informativas. Notícias contextuais-explicativas, que trazem mais fontes e se dedicam com mais detalhes ao tema, são minoria e mais comuns em veículos de mídia independente. 

“É preciso que a imprensa possa entender com mais profundidade o sistema de justiça. Isso necessariamente desencadearia um movimento de diversificação das fontes, com algum espaço para as de defesa”,  destaca Flávia Rahal. “Notícias que se identificam somente com uma das partes  – e isso fica claro na pesquisa – têm impacto expressivo nas decisões dos magistrados”.

Além de juízes, também foram ouvidos defensores públicos e promotores sobre como a mídia apresenta os acusados. Na visão geral deles, as notícias imputam uma culpabilidade prévia, inclusive por utilizarem termos técnicos de forma incorreta. Já os integrantes dos veículos de imprensa relataram que percebem um apelo do público pela prisão, além do apoio a penas mais severas. 

Apesar da dimensão da população carcerária brasileira, parte dos atores do sistema de justiça entrevistados não reconhece o processo de encarceramento em massa. Vale ressaltar que atualmente o Brasil tem a 3ª população carcerária do mundo em números absolutos, com mais de 755 mil pessoas presas (Departamento Penitenciário Nacional) – e somente a 6ª maior população mundial. A negação do superencarceramento não reflete a percepção da maioria dos entrevistados, no entanto, observou-se uma similaridade de argumentos entre aqueles que não consideram haver uma grave situação no sistema carcerário ou de que haja elementos determinantes referentes a raça, classe, gênero e idade nesse cenário. A repetição dos argumentos, indica que essas ideias devem estar disseminadas de maneira mais ampla.

O estudo defende que interações entre mídia e todos os atores do sistema de justiça podem ser positivas para ambos os lados. Encontros formativos e documentos com orientações sobre questões relacionadas ao racismo, ao reconhecimento de suspeitos e ao direito de defesa poderiam auxiliar tanto na formulação das reportagens, como no melhor uso de informações jornalísticas nas sentenças. O aprimoramento da base de dados dos tribunais e o fomento ao  trabalho de assessoria de imprensa das cortes também aparecem como recomendações da pesquisa.  

Confira o relatório completo da pesquisa aqui. O material também conta com um sumário executivo aqui

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