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Em SP, de cada 4 pessoas que deveriam ter deixado a prisão no primeiro ano da pandemia, 3 foram mantidas atrás das grades por juízes

Mutirão do IDDD que soltou mais de 100 pessoas enquadradas em recomendação de desencarceramento do CNJ, identificou que Justiça só concedeu liberdade a 26% dos quase 450 atendidos que tinham direito

Relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) divulgado nesta terça-feira (10/08) mostra que a esmagadora maioria (74%) das pessoas presas que deveriam ter sido beneficiadas pela Recomendação n.º 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com liberdade provisória ou outras medidas alternativas à prisão, foram mantidas no cárcere durante o primeiro ano da pandemia.

Publicada em março de 2020, a Recomendação 62 do CNJ convocou magistrados brasileiros a prestarem especial atenção à necessidade de redução da população carcerária nos casos de idosos, demais grupos de risco da Covid-19, além de acusados de crimes sem violência ou grave ameaça. A orientação se deu em razão das condições insalubres das prisões do país, locais considerados de maior transmissibilidade de doenças infecciosas, dada a superlotação e impossibilidade de cumprir protocolos sanitários, a começar pelo distanciamento físico e dificuldades na circulação do ar.

Reunindo informações de 448 atendidos por um grupo com 92 advogados e 11 estudantes de Direito, entre abril de 2020 e janeiro deste ano, o levantamento do IDDD revelou que mesmo as 118 pessoas soltas (26% do total), só o foram após 207 pedidos de liberdade negados em instâncias anteriores.

“Os resultados desse mutirão carcerário são preocupantes. O Judiciário, que buscou proteger seus membros deixando de realizar uma série de procedimentos e atos processuais presenciais, se desvencilhou da responsabilidade com a preservação das vidas de pessoas sob custódia do Estado. E isso está documentado não só nos números, mas também no conteúdo de suas determinações”, observa o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Leonardo se refere a decisões como a proferida por uma Vara de Embu das Artes, SP, em maio de 2020, negando pedido de liberdade a um jovem de 21 anos, acusado de tráfico e preso no Centro de Detenção Provisória II (CDPII) de Osasco. “Em meio à crise de saúde pública que vivenciamos, a libertação do agente poderia representar risco a sua saúde, considerando não termos notícias de presos infectados no presídio do agente (sic)”, afirmou o magistrado. À época, a unidade apresentava taxa de contágio de mais de 25%, isto é, aproximadamente oito vezes maior que a do município em que o CDP está localizado.

Negacionismo no Judiciário

Os números mostram ainda que, apesar de 100% dos pedidos dos advogados terem como base a Recomendação 62 – e, portanto, a emergência sanitária -, em mais da metade (52,5%) das concessões de liberdade a pandemia nem sequer foi mencionada pelos magistrados.

“Se os juízes constataram a desnecessidade da prisão por motivos que não estavam relacionados à pandemia, precisamos perguntar, então, por que elas estavam presas”, questiona Vivian Peres, assessora de projetos do IDDD. Ela lembra que é papel do Poder Judiciário estar atento à situação processual das pessoas no cárcere e cita o art. 316 do Código de Processo Penal, que determina a realização de revisões periódicas por parte dos juízes sobre as prisões que decretam.

O estudo do IDDD indica que a lei não tem sido cumprida, uma vez que metade das pessoas que conseguiram a liberdade já tinham esse direito por motivos que não estão relacionados à proteção à saúde em razão da pandemia. O fenômeno tem extensão ainda desconhecida num país com quase 760 mil pessoas presas, que provavelmente também não têm sua situação reavaliada por juízes e desembargadores individualmente.

Ao analisar as decisões que mantiveram as prisões, o IDDD identificou que 39% (81) delas se referiam explicitamente à Recomendação 62, fato que sugere que os magistrados citam a orientação muito mais para deslegitimá-la do que para reforçar seu caráter de medida de proteção à vida e à saúde.

“Tendo em vista que a taxa de menção ao documento do CNJ nos decretos favoráveis foi de 28% contra 39% nos negativos, concluímos que a Recomendação 62 acabou sendo mais usada pelos magistrados para negar do que para conceder liberdade. A orientação foi sendo esvaziada por uma atitude negacionista que coloca em risco a vida das pessoas encarceradas”, conclui Peres.

Se em março de 2020, antes da primeira morte por Covid-19 em um presídio brasileiro, a Recomendação 62 do CNJ sinalizava para juristas preocupação do órgão com a vida e a saúde das pessoas encarceradas, a prática mostrou que a orientação não tem atingido seu propósito humanitário.

“Esse diagnóstico do IDDD permite suscitar, inclusive, questões a respeito da responsabilidade do Judiciário em mortes evitáveis durante essa calamidade. É um documento que traz fortes indicativos de deturpação do papel de garantidor da lei e de direitos fundamentais por parte das autoridades”, finaliza o presidente do IDDD, Hugo Leonardo.

Confira o relatório completo da pesquisa aqui.

 

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