Leônidas Ribeiro Scholz
Conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Sob o título ‘2ª Turma do Supremo aceita denúncia por recebimento de doação eleitoral’, a edição de 07/03/2017 da revista eletrônica Conjur veiculou a informação de que o mencionado órgão fracionário do STF, por maioria de votos, autorizou a abertura de ação penal contra determinado membro do Congresso Nacional “por recebimento de doação eleitoral legal, mas de origem ilícita. O parlamentar é acusado de lavagem de dinheiro e corrupção em um dos inquéritos da operação ‘lava jato’.”
Lê-se também na supracitada reportagem a observação de que “o colegiado fixou a tese de que o recebimento de dinheiro de origem ilícita, ainda que de forma legal, por dentro do sistema eleitoral, é motivo para o recebimento da denúncia”.
E, ainda: “Ao abrir a divergência, Toffoli disse que o suposto recebimento de propina, por meio de registro oficial na Justiça Eleitoral, não pode ser caracterizado como lavagem de dinheiro. “Aqui, no caso concreto, não há a clandestinidade, porque houve depósito em conta do partido, contas que são sindicadas pela Justiça Eleitoral”, afirmou. O ministro Gilmar concordou. Para ele, o recebimento de doações suspeitas de campanha não pode ser tida como crime de corrupção sem que exista uma promessa de contrapartida a favor do doador por parte do político. ‘Uma doação feita às claras tem verniz de legalidade, impondo à acusação um especial ônus probatório. Não é como um candidato que tivesse sido flagrado recebendo uma mala preta cheia de dólares na madrugada’.”
O caso criminal focalizado pela matéria jornalística trazida à colação serve apenas como ponto de partida para a aferição, no campo teórico, do caráter da relação entre doação eleitoral e crime de corrupção.
Noutra forma de expressão, é preciso perquirir se à caracterização do crime de corrupção basta a ilegalidade da forma pela qual efetuada a contribuição eleitoral ou a ilicitude da origem dos recursos em que se consubstancia.
Não se exige, para o aperfeiçoamento típico da corrupção, que a ‘propina’ – seja a meramente prometida, seja a efetivamente entregue e recebida – guarde procedência ilícita; isto é, que se trate de dinheiro proveniente de outra infração penal.
Presta-se à configuração da corrupção tanto a ‘propina’ consistente em pecúnia que o corruptor tenha anteriormente recebido, por exemplo, pela venda de entorpecente, como a que haja percebido pela regular prestação de tal ou qual serviço lícito.
A proveniência ilícita dos recursos ou a utilização de ‘caixa 2’ trazem a desenho, teoricamente, outros tipos penais, como o de lavagem de capitais, o de crime contra a ordem tributária, o do artigo 350 do Código Eleitoral; todos, no entanto, a depender da materialização dos demais componentes dos respectivos figurinos legais.
Frise-se, pois: o perfazimento do tipo penal da corrupção, tanto ativa, como passiva, independe da origem do dinheiro em que se materialize a vantagem indevida, concreta ou potencial, que compõe o ponto nuclear da correlata incriminação legal.
O essencial, para o crime de corrupção, é que a promessa ou a entrega da vantagem econômica, de um lado, e a aceitação ou o recebimento, de outro, guardem relação com a função do servidor público que a solicita ou recebe, para si ou para outrem, ou a quem seja ela prometida ou oferecida em troca da prática, omissão ou retardamento de ‘ato de ofício’.
Ainda que não seja imprescindível, para a corporalização do crime de corrupção, que o funcionário público efetivamente pratique, deixe de praticar ou retarde o ‘ato de ofício’ visado, afigura-se impreterível não apenas integrar ele o rol de suas atribuições funcionais, como também representar, ainda que apenas potencialmente, a contrapartida da vantagem indevida constitutiva do objeto das condutas nucleares dos respectivos arquétipos legais.
Isto, mesmo após o elastério interpretativo dos arquétipos de corrupção levado a efeito pelo STF no julgamento do ‘Mensalão’ – AP 470: “Como amplamente divulgado nas mídias falada e escrita, o Plenário da Corte Suprema deliberou que é bastante para a configuração do ilícito o mero recebimento de vantagem indevida por funcionário público, dispensando-se a precisa identificação do ato de ofício a ser praticado. Segundo o novo posicionamento, basta que se demonstre o recebimento de vantagem indevida, subentendendo-se a possibilidade da prática de ato comissivo ou omissivo, desde que este esteja na esfera de atribuições do funcionário”.[1]
Logo, nem a regularidade ou não da forma pela qual se realize a doação eleitoral, nem a licitude ou não da origem dos respectivos recursos interferem na tipicidade do delito de corrupção, centrada, com efeito, no binômio vantagem indevida – ato de ofício.
De maneira mais descongestionada, não há relação necessária ou – e menos ainda – automática entre doação eleitoral marcada pela origem ilícita dos recursos ou processada, tanto na partida, como no destino, no campo do denominado ‘caixa 2’ e corrupção.
Assim como, inversamente, doação eleitoral de valores com proveniência lícita e, mais, regularmente efetuada, recebida e contabilizada não exclui, a priori, a possibilidade de intercorrência do delito de corrupção.
Enfim – e como assinalam os eminentes penalistas Alaor Leite e Adriano Teixeira, mestres e doutorandos na Universidade Ludwig Maximilian, de Munique: “Dito mais concretamente, é possível falar em corrupção em casos em que a doação foi regular segundo os padrões do direito eleitoral e, inversamente, é perfeitamente possível chegar- se à conclusão de que não houve corrupção em casos de doações vultosas e irregulares. A discussão é mais complexa do que fazem crer as apressadas associações referidas, pois exige uma intensa reflexão sobre o conceito de vantagem indevida e também sobre a necessidade de uma conexão entre a vantagem e o exercício da função, o chamado “pacto de injusto” da corrupção. O que se pode adiantar é que a doação irregular, seguida ou não da constituição de um caixa dois, pode ser, no máximo, ato executório, por exemplo, de lavagem de dinheiro ou um ato preparatório para o cometimento de um número indeterminado de delitos, que podem ser de corrupção ou não, de modo que essa conduta pode ser empírica, mas não conceitualmente próxima da corrupção (…) O nosso ponto aqui é, repita-se: doações ilegais podem servir de indício, mas não constituem por si só crime de corrupção e doações legais não excluem de antemão a realização dos tipos penais de corrupção.”[2]
Leônidas Scholz é advogado criminal e membro do Conselho Deliberativo do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
[1] Parecer da Procuradoria Regional da República – 2ª Região no HC 8823/RJ – TRF2.
[2] “Nem toda doação irregular a caixa dois é crime de corrupção”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-nov-15/nem-toda-doacao-irregular-caixa-dois-constituem-crime-corrupcao