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De boa-fé o inferno está cheio

Renato Marques Martins
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 31 de agosto de 2016.

Já é possível ver a cena:

— Juiz pergunta ao Policial: mas o acusado confessou que a droga estava escondida na casa dele?

— Policial: A princípio não Excelência, ele negou, disse que era trabalhador, mas não tinha carteira assinada. Mas eu tinha recebido uma denúncia anônima e estava cheio de boa-fé, até porque eu nem conhecia ele, não tinha porque querer prejudicá-lo, correto? Aí eu dei umas “bolachas” bem dadas na cara dele, e disse que se ele não me dissesse onde estava a droga nós iríamos quebrar a casa dele toda até encontrar, e se encontrássemos, iríamos prender a mãe dele também, que era uma pessoa já idosa, porque a casa estava no nome dela. Aí ele franqueou a nossa entrada de livre e espontânea vontade e mostrou onde estava a trouxinha de maconha. Aí nós demos voz de prisão.

É isso o que vai acontecer caso as tais 10 Medidas Anticorrupção propostas pelo MPF sejam levadas adiante. Não que a violência policial, a invasão dos domicílios sem autorização judicial e outras tantas ilegalidades já não aconteçam todos os dias nas periferias. É uma constante e ocorrem em todos os lugares. Contudo, o policial, na maioria das vezes a única “testemunha” da prisão, não confessa ter agido assim.

Se descoberto, pode levar à anulação das provas assim colhidas e à absolvição do acusado, por mais culpado que ele seja. O que quer o MPF é que tais ilegalidades sejam legitimadas se a autoridade estiver de boa-fé, tal como o policial no diálogo acima. Se a boa-fé for razão para legitimar condutas ilegais, haverá um verdadeiro estímulo à prática de ilegalidades de todos os tipos, inclusive violência policial. É isso o que a sociedade quer como legal e justo?

Policial nenhum bate na cara de empreiteiro que mora em mansão no Morumbi ou em apartamento de luxo na Vila Nova Conceição. Os implicados na Lava Jato não estão com medo disso, embora um dos Procuradores da República atuantes na Lava Jato tenha defendido expressamente a “possibilidade de a segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos”.

Isto é, o MPF defende a utilização da prisão como forma de “influenciar” o réu a colaborar com a acusação, o que, ao fim e ao cabo, é uma forma mais “ligth” da mesma tortura. Mas ou a lei é garantida para todo mundo, ou não é para ninguém. Não se pode, a pretexto de se perseguir empreiteiros endinheirados, querer afastar as garantias legais de todos. Quem vai acabar apanhando é o pobre da periferia.

No conhecido episódio dos grampos telefônicos dos diálogos entre o ex-presidente Lula e Dilma Rousseff, interceptados mesmo depois de uma ordem judicial para encerrar as gravações, o juiz federal Sérgio Moro, cheio de boa intenção, não se duvida, aludindo inclusive ao interesse público em conhecer o conteúdo de tais diálogos, resolveu torná-las públicas. A Lei nº 9.296/96, que trata das interceptações telefônicas, proíbe a divulgação de qualquer conversa interceptada (art. 8º) e considera crime punido com prisão de 02 a 04 anos “quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei” (art. 10). Gostem ou não da Dilma e do Lula, nenhum juiz pode tornar público diálogos que mandou interceptar, mesmo que esteja com a maior boa-fé do mundo, porque a lei proíbe.

E o Supremo Tribunal Federal, na Reclamação nº 23457, já reconheceu a ilegalidade de o juiz Sérgio Moro ter tornado tais diálogos públicos. O que o MPF quer com as 10 Medidas que chama de anticorrupção é que tal ilegalidade seja legitimada. Quer que os excessos e abusos de procuradores e juízes sejam legitimados, só porque estariam de boa-fé. Aliás, quem é que não está de boa-fé quando está investigando um crime, correto?

De boa-fé o inferno está cheio. Não pode o Estado infringir a lei para perseguir um criminoso. Se o fizer, será tão ilícito quanto o ato cometido pelo bandido. Ambos infringiram a lei. E o que queremos é o estrito cumprimento das leis.

Lá nos Estados Unidos, país que, como dito pelo Procurador Deltan Dallagnol no artigo publicado na edição de ontem (30) do Estado, é berço da democracia mundial e da proteção de direitos individuais, e de onde o MPF reclama termos importado “pela metade” o princípio do fruto da árvore envenenada, segundo o qual a prova originada de outra prova ilícita, também é ilícita por derivação, uma procuradora do estado da Pensilvânia, cargo comparado ao do Ministério Público, foi condenada, e provavelmente irá presa, por vazar informações de um julgamento de um colega procurador filiado a um partido político rival.

Aqui no Brasil conteúdos sigilosos de investigações são relevados todos os dias e as autoridades que cometem tais abusos não são levadas às barras dos tribunais. Daí a grita generalizada de juízes e procuradores contra o projeto de lei nº 280/16, do Senado, que define os crimes de abuso de autoridade. O que as 10 Medidas chamadas contra a corrupção na verdade deseja é legitimar todos os tipos de excesso e abuso das autoridades contra o cidadão sem que respondam por seus atos ilícitos.

Não se trata de frear a Lava Jato, como correram espertamente a dizer os procuradores, para quem, qualquer um que deles discorde está contra a Lava Jato. Mas sim, que numa sociedade que se pretende democrática, nenhum poder ou autoridade é absoluto, devendo existir um sistema de freios e contrapesos, sem o que se desbordará em autoritarismo, em excessos e abusos contra o cidadão.