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Entrevista: Cristiano Maronna comenta recente decisão do STF que afastou a hediondez do crime de tráfico privilegiado

Para o Secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e associado do IDDD a “decisão a respeito da não hediondez do tráfico privilegiado não resolve o problema da jurisprudência autoritária que considera lícita a presunção de tráfico”  

As penas de traficantes que forem primários, possuírem bons antecedentes e não integrarem organizações criminosas, podem ser mais brandas no que diz respeito ao tipo de regime inicial e à progressão da pena, de acordo com a decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 118533, realizado no último dia 23 de junho. Assim, por oito votos a três, a Corte Suprema entendeu que o chamado tráfico privilegiado, no qual as penas podem ser reduzidas, conforme art. 33, §4º, da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), não deve ser considerado crime de natureza hedionda.

Na ocasião, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Conectas Direitos Humanos, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e Plataforma Brasileira de Política de Drogas, encaminharam aos membros do Supremo um memorial, destacando que “a lei de crimes hediondos[Lei 8.072/90], por regular matéria constitucional, esforçou-se abertamente em delimitar a conduta exata a qual recaem as iras da hediondez. Para tal, seu rol é por vezes mais restritivo que o tipo penal ao qual se remete, incluindo não necessariamente uma forma de determinado delito, mas a maneira, contra quem e por quem a conduta foi executada”. Assim, o documento defendeu: “Pelo exposto, à luz da legalidade formal do Direito Penal-Constitucional, importa que seja interpretada de maneira restritiva o art. 2º da Lei 8092/90, para não incluir a forma privilegiada do tráfico de entorpecentes prevista no art. 33, §4º da Lei 11.343/06”.

O Secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (rede formada pelo IDDD e mais 33 organizações da sociedade civil) e associado do IDDD comenta em entrevista os possíveis reflexos da decisão do STF. Confira:

Como a decisão do Plenário do STF pode contribuir para conter a superlotação dos presídios?
cristiano-maronna-pbCristiano Maronna: O Plenário do STF decidiu que no caso do chamado tráfico privilegiado, em que o agente é primário, tem bons antecedentes, não se dedica às atividades criminosas nem integre organização criminosa, não se aplicam as restrições de direitos previstas na Lei 8.072/90. Ocorre que por força de uma aplicação da Lei 11.343/06 em desconformidade com a Constituição, usuários são presos, processados e condenados como se traficantes fossem. A mecânica perversa de aplicação da Lei de Drogas obriga a pessoa flagrada com drogas a provar que não é traficante, o que viola a regra do ônus da prova e a presunção de inocência. Infelizmente, a decisão do STF a respeito da não hediondez do tráfico privilegiado não resolve o problema decorrente dessa jurisprudência autoritária que considera lícita a presunção de tráfico, que nada mais é do que responsabilidade objetiva. Por isso, a superlotação dos presídios, consequência do processo de superencarceramento que a aplicação disfuncional da Lei de Drogas produz, e que tornou o Brasil a quarta maior população prisional do planeta, continuará a ser uma realidade. Cabe a nós advogados lutar para que direitos como a liberdade durante o processo como regra e a aplicação de penas alternativas à prisão sejam afirmados. Oxalá a decisão do STF estimule essa necessária mudança na cultura judiciária, no sentido de uma aplicação conforme à Constituição da Lei de Drogas.

Diante de uma cultura de encarceramento massivo, presente tanto nos três Poderes como na sociedade civil, como você acredita que o Judiciário se alinhará para cumprir e colocar em prática essa decisão do Supremo? Quais os mecanismos que as organizações da sociedade civil podem utilizar para garantir que o entendimento seja seguido pelas instâncias inferiores?
CM: A primeira e mais importante mudança é a da cultura judiciária: a ideia de que só a prisão representa a resposta adequada para todo e qualquer ilícito, que se assemelha a uma tara punitiva, precisa ser revista. Prisão só em último caso e somente quando substitutivos penais se mostrarem absolutamente inviáveis. A transformação passa também pela mudança de mentalidade em relação às drogas em geral. Há um consenso se formando em todo o mundo, no sentido de que a política de drogas deve se afastar do sistema de justiça criminal e se aproximar de uma abordagem que garanta saúde, direitos humanos e redução de danos. Com base nessa premissa, foi criada em 2014 a Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), da qual o IDDD faz parte ao lado de outras 33 organizações da sociedade civil. A PBPD vem empreendendo esforços para reformar a política de drogas brasileira, na direção de um modelo de controle não repressivo e mais humano e eficiente. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, no qual o STF discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 [constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo pessoal], diversas organizações que haviam se habilitado como amicus curiae, entre as quais IDDD, IBCCRIM, Conectas, ABGLT, Instituto Sou da Paz, Pastoral Carcerária, Abesup, Viva Rio, Comissão Brasileira Drogas e Democracia, adotaram uma estratégia conjunta e o resultado, até agora, foi positivo: três dos onze ministros votaram pela inconstitucionalidade do mencionado dispositivo. Creio que o trabalho em rede é o caminho para que a sociedade civil contribua para a consolidação de uma cultura de direitos humanos, o que inclui a aplicação do entendimento do STF a respeito do tráfico privilegiado.

Você avalia que essa decisão poderá impactar no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659?
CM: Creio que essa decisão indica uma tendência, mas é sempre muito difícil prever o resultado de um julgamento, especialmente nesse caso, que trata de um tema polêmico e contaminado por uma exacerbação moralista de certos grupos, especialmente os grupos religiosos mais conservadores. Há uma disputa acirrada entre os partidários da ilegitimidade da intervenção penal em hipóteses de condutas auto lesivas, como é o caso das drogas e os defensores da “ortopedia moral” que autoriza o Estado a tratar adultos como crianças por meio do paternalismo penal. O Ministro Teori Zavascki pediu vista dos autos em outubro de 2015 e há a expectativa de que o julgamento seja retomado no segundo semestre de 2016. O STF é a grande esperança de mudança na política de drogas brasileira.

Quais serão os reflexos do entendimento do STF na atual política de drogas?
CM: Dado o “momentum” pelo qual passamos, marcado pelo punitivismo a qualquer custo, o STF funciona como uma barreira de contenção ao desmedido avanço repressivo. Em boa hora o Ministro Celso de Mello prolatou decisão reafirmando a necessidade de trânsito em julgado para a execução da pena, relativizando a chocante decisão de fevereiro em sentido oposto. Nesse sentido, o IBCCRIM e o IDDD foram admitidos como amicus curiae na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 43, do Partido Ecológico Nacional, e na ADC 44, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. As ações, que tramitam em conjunto, questionam o cumprimento provisório da sentença penal visando a garantia do princípio da presunção de inocência. Há uma grande pressão de setores conservadores interessados na supressão de direitos e no agigantamento da repressão penal, campo fértil para a transformação da prisão em negócio, o que já está acontecendo por meio da privatização de presídios. De todo modo, o STF representa a última trincheira em defesa da democracia e do Estado de Direito. E, a despeito de claudicâncias aqui e ali, vem cumprindo o papel de garantidor da Constituição contra arreganhos autoritários que surgem de vez em quando. No caso da política de drogas, o STF tem tido um papel da maior relevância: em 2011 assegurou a legalidade da Marcha da Maconha, que estava sendo proibida em diversos estados, inclusive em São Paulo; em 2015, iniciou a discussão sobre a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 e em 2016 declarou a não hediondez do tráfico privilegiado. Para além do STF, no caso da maconha medicinal, a justiça federal de Brasília, em ação civil pública proposta pelo MPF, autorizou a importação de remédios à base de THC. O MPF recorreu para permitir que pacientes de cannabis medicinal possam importar sementes e iniciar o auto cultivo do próprio remédio. Recentemente, o MPF ajuizou medida para impedir o financiamento público de comunidades terapêuticas, quase todas de cunho religioso, questionando a regulamentação criada pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas do Ministério da Justiça (SENAD). Dada a inoperância do Executivo e o conservadorismo do Legislativo, o Judiciário vem exercendo um papel de destaque na evolução da política de drogas brasileira.

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