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Crimes e Penas

Fábio Tofic Simantob 

Vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 24 de abril de 2015.

Quando questionado sobre sua opção pelo crime, um velho advogado costumava pilheriar respondendo que para atuar na área criminal é preciso ter falha de caráter, escandalizando a todos e encerrando abruptamente a conversa. O espírito que determina a escolha costuma ser bem mais elevado, de fato. Lembro­-me de que na época de faculdade a procura pela área criminal era rara entre os estudantes. Os poucos que nela se aventuravam o faziam por puro idealismo, tão distante era a perspectiva de fazer fortuna em comparação com outras áreas muito mais promissoras do ponto de vista financeiro.

Estávamos na segunda metade da década de noventa. Poucos anos antes alguns juristas, entre eles desembargadores aposentados, juízes e advogados, e também promotores, fundavam, ao ensejo do massacre do Carandiru, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, pioneiro na defesa de um direito penal mínimo, garantista e, sobretudo, humanista, fazendo frente ao discurso de lei e ordem então em voga no seio da opinião pública.

Para qualquer jovem aspirante a advogado criminal, o contato com aquelas ideias progressistas que absorvíamos com voracidade era a principal ferramenta de futuros profissionais que em breve estariam nos tribunais defendendo o respeito às liberdades, aos direitos e garantias fundamentais dos acusados.

O interesse, todavia, ia muito além da prosaica formação profissional. Havia mesmo uma convicção, partilhada por todos que respiravam os mesmos ideais, de que aquelas pessoas, falo de juristas como Ranulfo de Mello Freire, Alberto Silva Franco, Adauto Suannes, detinham não só o conhecimento jurídico, mas principalmente a sensibilidade para compreender que o problema do crime transcende o direito penal, com suas fórmulas simplificadas e seus modelos artificiais, que o crime possui estrutura pluridimensional, e que o olhar para capturar-­lhe melhor as causas deve ter natureza multidisciplinar.

Tal intelecção acarretava no plano estritamente jurídico uma conclusão muito importante, cerne do que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chamou de garantismo penal, a ideia de que a função do direito penal e da justiça penal e, portanto, dos juízes criminais, é afiançar a efetividade dos direitos e garantias individuais do acusado. Premissa que já no ano 2000, inspirou a criação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, de cuja fundação participaram notáveis advogados brasileiros, sob a batuta de Márcio Thomaz Bastos. A função do juiz não é combater o crime, reduzir taxas de criminalidade ou garantir maior segurança à sociedade, objetivos que devem ser perseguidos com políticas públicas e não com a toga. Em suma, o direito penal não é panaceia para a solução de todos os males.

Por razões ontológicas, que remontam a tempos imemoriais, a sociedade precisa prever algum tipo de sanção para aquele que comete crimes, mas não ultrapassa o terreno da mera especulação a crença de que quanto maior a pena e maior o número de condenações em massa, menor será o avanço da criminalidade. Há países que punem bastante e com penas altas, e apesar disto não conseguem conter o crime, ao passo que outros punem pouco, com penas mais brandas, e apresentam níveis de criminalidade baixos, indicativo de que existem outros fatores a serem considerados na ciência criminal além da quantidade de penas e prisões.

A partir do momento em que esta forma de pensar tomou assento no judiciário, desencadearam ­se virulentas reações, apressadas em tachar de rebeldes de toga os poucos magistrados que ousavam cumprir a lei, garantindo direitos inscritos na Carta da República. Muitos chegaram a abandonar a carreira de juiz, tamanho o ostracismo e discriminação que sofreram. Juízes mais jovens ainda enfrentam as mesmas vicissitudes.

O judiciário mudou muito pouco neste período de quase vinte anos. A falsa crença de que negando sistematicamente direitos do réu iríamos diminuir a criminalidade redundou em duas constatações evidentes: uma das maiores populações carcerárias do mundo e uma polícia acomodada que, graças a esta complacência do judiciário, pode continuar aboletada em vícios do século XIX que beiram a ilegalidade, no lugar de investir em técnicas mais avançadas de investigação.

É bastante sintomático que quase a totalidade dos presos hoje no Brasil foram pegos em flagrante, normalmente por crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos (este último praticado sem violência) e pequenos tráficos. Enquanto isto, crimes mais graves, como homicídios, apresentam pífios índices de solução, e mesmo nos casos nos quais a polícia consegue apontar um culpado, as provas ainda costumam ser testemunha de “ouvir dizer”, denúncia anônima, ou malfadados relatórios de investigação, que nada mais são do que relatos dos próprios policiais reproduzindo supostos depoimentos de populares jamais identificados.

No campo legislativo, o movimento foi na mesma direção. Aumento de penas, restrição de direitos, reenquadramento de crimes na categoria de hediondos e criminalização de novas condutas. Resultado? Aumento da criminalidade e da sensação de insegurança.

O mais grave de todos os desrespeitos à lei é a sistemática desobediência aos direitos mínimos do preso, vergonha nacional denunciada recentemente pelo escritório regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e já objeto de inúmeras advertências de organizações nacionais e internacionais, entre elas o próprio CNJ.

A inaceitável condição dos presídios já nem mais é apenas uma questão de humanidade, tornou­-se verdadeira questão de segurança pública. No Estado de São Paulo foi a principal responsável pelo surgimento de facções criminosas, que hoje controlam o crime organizado dentro e fora dos presídios.

Não há quem em sã consciência possa negar que a prisão atualmente no Brasil é fator de incremento da criminalidade, muito mais do que instrumento de ressocialização do preso, tal como idealizado pela nossa lei penal.

Para quem acreditava que era apenas questão de tempo para aquela visão progressista do direito penal ver­-se incorporada ao legislativo e ao judiciário brasileiros, o retrato é bastante desanimador. O discurso populista que propõe aumento de penas, redução da maioridade penal e restrição de direitos e garantias ainda exerce forte influência em tudo que se propõe em termos de segurança pública, e ganha fôlego em ano eleitoral, pois o que tem de simplista e demagógico tem de fácil e sedutor.

Apesar do desalento, muitos ainda continuam depositários dos ideais humanistas que tanto ajudaram a forjar uma geração inteira de advogados, juízes e inclusive promotores, profissionais que agora, quase vinte anos depois, estão convencidos de que ao idealismo do tempo de estudante alia­-se a certeza não somente moral e ética, mas também utilitária e pragmática, de que o caminho do respeito à lei e aos princípios constitucionais é o único capaz de nos conduzir de forma segura ao altar da convivência pacífica.

A pior face do crime é o efeito devastador que exerce sobre a razão, colocando-­a sob o jugo de vibrações sociais e desatinos populares. É contra isto que devemos nos opor.

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