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Copa do Mundo, manifestações populares, produção legislativa e resistência democrática

Rogério Fernando Taffarello
Advogado. Mestre em direito penal pela USP. Associado ao IDDD

 

 

Realiza-se em nosso país, entre os dias 12 de junho e 13 de julho, a Copa do Mundo de futebol. O evento nos chega volteado de um sem número de polêmicas, aprofundadas desde os protestos de meados do ano passado, as quais questionam a conveniência política de o Brasil sediar um acontecimento de tamanho porte em meio a inúmeras deficiências econômicas e sociais, sobretudo na medida em que implica elevado dispêndio de recursos públicos e assunção de compromissos que interferem até mesmo no ordenamento jurídico vigente.

 

Passadas as primeiras duas semanas de jogos, e sem embargo de problemas pontuais sucedidos aqui e acolá, o campeonato parece fadar-se ao sucesso sob diversos ângulos: o da qualidade das partidas, o do funcionamento dos estádios, o da confraternização e harmonia entre torcedores dos trinta e dois países participantes. É certo, porém, que muitas das demandas sociais que se levantaram nas ruas do país nos últimos doze meses permanecem vivas no seio dos que as abraçaram, e não é de se esperar – e tampouco de se desejar – que reivindicações legítimas pela efetivação de direitos sociais devam cessar durante ou após as festas futebolísticas.

 

As grandes manifestações que, um ano após, ainda causam perplexidade em analistas e preocupações em políticos emergiram em fins de maio do ano passado, sob a forma de protestos contra o aumento de passagens de transporte público em algumas capitais. Adquiriram imprevista magnitude após as grotescas cenas de uma desproporcional, desnecessária e flagrantemente antijurídica repressão policial vistas naqueles atos – notadamente na hedionda noite de 13 de junho de 2013 em São Paulo.

 

A violência estatal foi, destarte, o que fez eclodirem os protestos multitudinários daquele junho e dos meses subsequentes. Centenas de milhares de brasileiros foram às ruas desde então, movidos por ideologias e pautas diversas: às reivindicações contra o aumento das passagens misturaram-se coros mais genéricos contra a corrupção, contra a deficiente prestação de serviços públicos, contra governos e governantes, etc., bem como contra a realização da Copa do Mundo (o que, inclusive, implicou a especial ressonância dos atos durante a realização da Copa das Confederações no ano passado). Atônitos, governos estaduais e federal responderam erraticamente às demandas das ruas, ora silenciando, ora sugerindo (ou simulando) medidas de contenção de gastos desnecessários, ora anunciando uma reforma política que – mais uma vez – não ocorreu. Contudo, omitiram-se mais uma vez acerca da questão capital para a eclosão dos grandes protestos: a necessidade de se reformarem as Polícias ou, ao menos, a cultura e as práticas reinantes nas estruturas policiais brasileiras1.

 

Na via legislativa, as respostas – ou ensaios de respostas – aos protestos foram ainda piores. Em fins de junho de 2013, a Câmara dos Deputados, alardeando ouvir uma tal “voz das ruas”, rejeitou proposta de emenda constitucional sem se saber ao certo do que se estava a tratar ali. Na mesma semana, e com semelhante alarde, o Senado Federal propagandeou a aprovação em primeiro turno do PLS 204/11, que visa a adicionar ao rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/90, art. 1º) as figuras legais de corrupção, peculato, concussão, excesso de exação (!) e homicídio simples (!!), como se o histórico da criação e posteriores adições à lei hedionda não demonstrassem à suficiência a sua imprestabilidade para evitar delitos. Meses depois, à medida que manifestações passaram a apresentar frequentes atos de violência patrimonial por parte de pessoas e grupos que a elas se somavam – como os notórios blackblocs –, e novamente diante da inépcia das agências de controle para prevenir e reprimir ilícitos dentro das balizas legais, parlamentares e governantes puseram-se a buscar fórmulas imaginadas como milagrosas, mas em verdade simplórias – ou mesmo toscas, visto que consistentes na repetição dos mesmos erros de sempre – de resolução de conflitos não compreendidos pelas autoridades.

 

Decididamente, tencionou-se apelar à produção legislativa simbólica no sentido da expansão desmesurada do direito penal: para além da citada etiquetagem hedionda de alguns tipos delitivos, propuseram-se neocriminalizações de figuras criativas como o “vandalismo” e a “desordem”; retomaram-se discussões quanto à criminalização do terrorismo; aprovou-se novel Lei de Organizações Criminosas contendo tipificação aberta e medidas processuais draconianas, as quais, poucos dias depois, órgãos policiais, ministeriais e judiciários erroneamente entenderam adequadas para abarcar desinteligências comezinhas havidas no bojo de protestos de rua.

 

Entre fins do ano passado e o início do corrente, em meio a diversas proposições legislativas do gênero e na medida em que a reiteração de protestos e a aproximação da Copa do Mundo inspiravam preocupações adicionais, adquiriu especial destaque no debate público o PLS 508/13, apresentado no mês de dezembro pelo Sen. Armando Monteiro.

 

Referido projeto tencionou “tipifica[r] o crime de vandalismo”, cominando-lhe penas de nada menos que 4 a 12 anos de reclusão na figura simples, que compreendia um sem número de condutas – muitas delas banais e sem afetação a bem jurídico algum, como a da mera “presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder […]substância inflamável ou qualquer outro objeto que possa causar destruição ou lesão” (art. 1º, § 1º), ou a de “estimular a participação” de terceiros em supostos atos de vandalismo (art. 1º, § 2º), sendo que outras já se encontram contempladas pela legislação penal vigente. Para além de possibilitar – face à imaginatividade de certos aplicadores expansionistas da lei2 – a punição de quem leve consigo um garfo ou caneta próximo de alegados “vândalos” (seja lá o que isso signifique), ou de quem distribua folhetos de divulgação de determinados atos, o projeto original ainda estatuiu tautológica causa de aumento de pena – a que equivocadamente chamou de qualificadora – para fatos praticados no âmbito de “manifestação popular de natureza pacífica e democrática, de cunho político ou reivindicatório de direitos” (art. 1º, § 3º), hipótese em que a exasperação máxima poderia conduzir à pena de 20 anos de reclusão. Não obstante, a versão original do projeto ainda pretendeu impor a obrigatoriedade do regime inicial fechado de cumprimento de pena (art. 1º, § 5º), cláusula que parece ser do gosto do legislador pátrio, mas cuja flagrante inconstitucionalidade já se viu reconhecida pela Suprema Corte (HC 111.840-ES, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.06.12).

 

Ante o nítido confronto do texto com liberdades públicas constitucionalmente garantidas, o Sen. Pedro Taques, relator designado na Comissão de Constituição e Justiça, propôs novo texto que rejeita aquela tipificação e projeta nova causa de aumento de pena no crime de lesão corporal e circunstâncias qualificadoras nos delitos de homicídio e dano para fatos praticados no âmbito de “manifestações públicas, concentrações populares ou qualquer encontro multitudinário” (Substitutivo ao PLS 508/13, arts. 2º, 3º e 4º), bem como propõe inovadora agravante genérica para fatos cometidos “com a utilização de máscara, capacete ou qualquer outro utensílio ou expediente destinado a dificultar a identificação do agente” (art. 1º). Igualmente evocando a aproximação da Copa do Mundo e a ebulição das ruas como indicativos de sua necessidade, tal proposta tampouco escapa de diversos vícios de constitucionalidade material – seja sob o ângulo da desproporcionalidade das consequências penais sugeridas, ou porque presume culpabilidade maior em casos em que ela em verdade se reduz, ou ainda porquanto impõe agravante baseada em fato juridicamente irrelevante e em nada atentatório a bens jurídicos alheios. Nada disso impediu, porém, que, após apresentado no início deste ano, o Substitutivo obtivesse apoio do governo federal e de veículos de imprensa, o que reclamou uma firme e célere reação da sociedade civil organizada contra mais um potencial atentado legislativo à Constituição da República e aos direitos de cidadania.

 

Assim foi que, no início de maio, a Rede Justiça Criminal, integrada pelo IDDD e mais sete entidades parceiras, disponibilizou aos integrantes da CCJ do Senado Federal parecer técnico produzido por solicitação inicial da Conectas Direitos Humanos (a qual também integra a Rede), apontando as inconstitucionalidades e contrariedade ao interesse público verificadas e opinando pela rejeição do texto original e do Substitutivo do PLS 508/13. Após duas sessões de intensos debates entre os integrantes da Comissão na primeira quinzena daquele mês, tendo alguns deles – como o Sen. Randolfe Rodrigues e o Sen. Lindbergh Farias – votado contrariamente ao projeto, citando trechos do parecer que a Rede lhes disponibilizara, o projeto foi retirado de pauta e, depois, o próprio governo federal houve por retirar o apoio inicialmente dado. Emergia, então, uma notável – malgrado ainda parcial – vitória da resistência democrática face à expansão irracional do direito penal.

 

Iniciada, semanas depois, a Copa do Mundo, a qual vem se realizando sem maiores percalços e tem sido elogiada pelo público e imprensa mundo afora, pode-se crer em um arrefecimento das pressões para a aprovação de um projeto que, uma vez convertido em lei vigente, fatalmente vitimaria muitos cidadãos até a superveniência de sua futura e inevitável declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, com os prejuízos inerentes que se imporiam às liberdades constitucionais. Conhecendo-se, porém, as oscilações do processo legislativo sob os embalos de fatos pontuais, pressões midiáticas e interesses eleitorais, convém que a sociedade se mantenha alerta e vigilante para que, passado o mundial de futebol, essa e outras proposituras legais de emergência sejam definitivamente enterradas.

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1Cabe assinalar que, ao final do ano passado, estudiosos elaboraram anteprojeto de emenda constitucional precisamente com vistas à reforma do modelo policial brasileiro, resultando na apresentação da PEC 51/2013 ao Congresso Nacional, ainda em fase inicial de tramitação. As bases da proposta foram explicadas por seu principal autor intelectual em artigo elaborado especialmente para o Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais: SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública. In: Boletim IBCCRIM, ano 21, nº 252. São Paulo: IBCCRIM, p. 03-05.

2Todos conhecemos muitos casos em que, por ignorância ou má fé, autoridades conferiram bisonhas interpretações a certos tipos penais – por vezes forjando prisões processuais onde nem tipicidade em tese havia. Para não fugir do contexto “manifestações”, basta-nos recordar, exemplificativamente, as notórias detenções realizadas em São Paulo por “porte de vinagre” um ano atrás, ou a prisão e ulterior condenação de um cidadão no Rio de Janeiro por “porte de desinfetante e água sanitária”. Mais recentemente tivemos uma demonstração extrema de desconhecimento da lei por parte da cúpula da Polícia Civil de São Paulo, que invocou o crime de “constituição de milícia privada” (CP, art. 288-A) para rotular protesto no qual a polícia ostensiva mais uma vez mostrou-se inoperante para evitar atos de dano ao patrimônio alheio, tendo o delegado-geral afirmado ser caso de responsabilizar criminalmente (e objetivamente) “[…] também os 22 líderes do MPL [Movimento Passe Livre]. Eles convocaram o ato e têm de ser responsabilizados pelos danos” (fonte: Portal G1, 23/06/14).

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