Domitila Köhler, advogada criminal e associada integrante do grupo de litigância estratégica do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Guilherme Ziliani Carnelós, advogado criminal e diretor de litigância estratégica do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Muito já se disse sobre a tal condução coercitiva. E, depois do rebuliço causado pela condução policial de um ex-presidente, pode parecer que tudo já foi dito. Não faltaram artigos dos mais diferentes e consagrados juristas para debater, analisar e criticar a prisão momentânea de quem é o alvo da vez da Polícia Federal com a utilização enviesada da regra do artigo 260 do Código de Processo Penal.
Afinal, é inegável que ser levado por policiais até uma delegacia configura cerceamento à liberdade – mesmo que com duração temporal limitada e pontual.
Como enfatizou Lenio Luiz Streck “numa palavra, chamando as coisas pelo nome: a condução coercitiva, feita fora da lei, é uma prisão por algumas horas. E prisão por um minuto já é prisão”.
E Aury Lopes Jr. também pontua, com maestria: “ora, a condução coercitiva é uma espécie de detenção, pois há uma inegável restrição da liberdade de alguém, que se vê cerceado em sua liberdade de ir e vir”. Antes, Aury já havia anotado que “mais do que nunca, é preciso compreender que o estar presente no processo é um direito do acusado; nunca um dever” e que “o imputado não é objeto do processo e que não está obrigado a submeter-se a qualquer tipo de ato probatório (pois protegido pelo nemo tenetur se detegere), sua presença física ou não é uma opção dele”[2].
De resto, não é preciso repetir aqui tudo aquilo que tarimbados juristas já disseram. É conhecida a origem pouco (ou nada) democrática do Código de Processo Penal criado sob a batuta de Getúlio Vargas. É cediço também que, nos termos do artigo 260 desse diploma (de inconstitucionalidade inegável), a condução coercitiva do acusado só seria cabível depois de uma intimação prévia eficaz, mas não cumprida. Que, desta forma, seria ato típico de ação penal, não de investigação.
Como defende Badaró por exemplo, é impossível chamar a condução de medida cautelar atípica sob o incabível uso de um poder geral de cautela – conceito este que não tem espaço nos estritos contornos da tipicidade/legalidade do direito processual penal e do artigo 5º, LIV, da Constituição, que garante que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Bem porque, a todo e qualquer alvo da Justiça Penal garante-se o direito ao silêncio, de não produzir prova contra si mesmo, de ter assistência de um defensor, dentre outros.
Eis a grande ironia, pois carregar a força um investigado é também constrangê-lo a depor quando lhe é garantido o direito amplo de manter o silêncio e, inclusive, à ausência (já que, como sói acontecer, seus dados qualificativos são muito bem conhecidos).
Mas, mesmo assim, a cada semana temos uma nova fase da Lava Jato; uma nova delação; um novo estardalhaço.
Coloquemos os pingos nos “is”. É no início do aprendizado acadêmico que se ensina ser a defesa em processo penal exercida de duas formas: a defesa técnica e a autodefesa.
Ora, sendo o interrogatório um ato de defesa, que a Carta Constitucional impõe seja ampla e, pois, impassível de interferências, tampouco advindas dos conhecidos atores das grandes operações policiais. Forçar o investigado a comparecer para depor é resquício de um tempo escuro.
Mas parece que se tem torcido para as autoridades fecharem as cortinas… Como diria Chico Buarque, “O coitado/Foi encontrado/Mais furado/Que Jesus/E no entanto/Ele se move/Como prova/O Galileu”[4].
Como explicar que essa violência, tão obviamente ilegal, permaneça intocada? A moda mais “jabuticaba” das operações da Polícia Federal não cumpre o Código de Processo Penal e afronta a Constituição. Não bastasse, transforma o excepcional em regra cotidiana e faz da violência desmotivada uma “regra estatal” oposta à própria lei.
Não existe justificativa jurídica, ou mesmo lógica, para conduzir sob flashes os alvos da Polícia Federal; a fantasia de licitude simplesmente não veste a condução coercitiva que diuturnamente ocupa as manchetes de nossas manhãs.
E é verdadeiro despautério afirmar que a exibição geralmente nacional de um mero suspeito tenha o condão de protegê-lo. Mas eis a questão: o ponto central é esta exibição.
Ninguém nega que todo acusado ou suspeito de um crime tem o inarredável direito ao silêncio. Mas, por ser suspeito, não tem o direito de passar incólume. Longe disso, é exibido como protagonista e vilão. Isso mesmo que as investigações possam ter idêntico sucesso sem esses flashes, sem essas conduções.
No entanto, a condução coercitiva é ponto obrigatório em todas as operações da Polícia Federal. Fica a impressão de que estamos anestesiados.
É verdade que o show montado em torno do ex-presidente causou reação da comunidade jurídica. Mas os tribunais ainda se abstêm de analisar a questão.
Ao contrário, a condução coercitiva tem sido vista por muitos juristas quase que como um “favor” da Corte. Afinal, o investigado há de levantar as mãos para o céu: podendo ser jogado no cárcere, qual o problema de um passeio de viatura registrado por fotógrafos e cinegrafistas?
Há, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF n. 395, ainda aguardando julgamento. O parecer já oferecido pela Procuradoria, longe de abordar a constitucionalidade do artigo 260 do Código de Processo Penal (objeto da ação)[5], reconhece expressamente que a prática representa “restrição de liberdade”, ainda que “menos gravosa do que a prisão preventiva”.
O STF já se levantou (e ainda se levanta) em outros tantos temas relacionados à liberdade, inclusive quando esta é ameaçada pelas operações da Polícia Federal. Precisa, é urgente, também se manifestar sobre mais esta “jabuticaba”, para definitivamente enterrá-la com profundidade e em terreno que não permita fazer germinar e crescer uma jabuticabeira.
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