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Audiência de Custódia: uma necessária e premente inovação legislativa

Augusto de Arruda Botelho
Diretor Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Isadora Fingermann
Coordenadora Geral do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

* Artigo originalmente publicado na edição nº 61 do Jornal Juízes para a Democracia

Em um país que já ultrapassou a inimaginável cifra de meio milhão de custodiados, dos quais mais de um terço representa o contingente de presos provisórios1, inovações legislativas que busquem emprestar cada vez mais rigor ao exame da legalidade da prisão em flagrante e da necessidade e adequação da custodia cautelar merecem ser encaradas com absoluta prioridade por nossos legisladores.

Foi, pois, com bastante alegria que o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) tomou conhecimento do projeto de lei n. 554/2011, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, que prevê a obrigatoriedade da apresentação do réu preso a um juiz no prazo de vinte e quatro horas.

Muito embora a proposta legislativa inicial já fosse um passo fundamental para a adequação das normas processuais penais nacionais ao artigo 7o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos2, recepcionada pelo Brasil em 1992, o texto substitutivo apresentado pelo Senador João Capiberibe e aprovado à unanimidade pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal no último dia 18 de setembro merece ainda mais aplausos.

Segundo a nova redação proposta para o artigo 306 do Código de Processo Penal3, “no prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação”.

É na audiência de custódia que o juiz decidirá pela necessidade ou não da manutenção da prisão provisória ou pela aplicação de outra medida cautelar, sempre depois de ouvir, necessariamente nesta ordem, o representante do Ministério Público, o preso e seu defensor – cuja presença no ato será obrigatória.

Para que a versão apresentada pelo preso nessa primeira oportunidade de contato com um juiz não seja utilizada em seu prejuízo no curso da instrução criminal, o texto aprovado na Comissão de Direitos Humanos do Senado prevê que o depoimento será registrado em autos apartados, evitando-se, assim, inverter a lógica trazida pela Lei n. 11.719/2008, segundo a qual o interrogatório passou a ser o último ato da instrução.

O controle imediato da legalidade, necessidade e adequação de medida extrema que é a prisão cautelar será, quiçá, uma forma eficiente de combater a superlotação carcerária que assola o país, sem perder de vista que a odiosa política de encarceramento em massa atinge com muito mais força a camada mais pobre e marginalizada da população brasileira.

Ora, a apresentação imediata da pessoa presa ao juiz é o meio de garantir que um cidadão passe o menor tempo possível preso ilegal e desnecessariamente, ainda que não possua advogado constituído, circunstância que caracteriza grande parte da população prisional. Sim, porque não é segredo algum que parcela significativa dos presos provisórios brasileiros tem seu primeiro contato com um juiz e um defensor público – momento em que pode narrar sua versão dos fatos e questionar a legalidade da prisão – apenas durante a audiência de instrução, debates e julgamento, três ou quatro meses após a prisão em flagrante.

Se tudo isso já não fosse o bastante para demonstrar a relevância da inovação legislativa, a audiência de custódia representa para o Estado mais um instrumento para a obtenção e verificação de informações precisas sobre os procedimentos policiais, evitando que maus tratos e práticas de extorsões continuem a ocorrer impunemente.

Se é certo que não mais se pode negar o atraso legislativo brasileiro para incorporar o instituto da audiência de custódia ao ordenamento jurídico nacional, posto ser o Brasil um dos únicos países na América Latina que ainda não apresentam o preso a um juiz logo após a prisão, é também certo que a iniciativa trazida pelo projeto de lei n. 554/2011 vem reparar mais esse vergonhoso anacronismo nacional e colocar o país um pouco mais no trilho de um sistema de justiça criminal compatível com o Estado Democrático de Direito que se pretende ser.

A Rede Justiça Criminal publicou, em dezembro, um boletim especial sobre a audiência de custódia. Confira o material clicando aqui.

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1Segundo dados do Infopen/2012, a população carcerária brasileira é de 548.003 pessoas, das quais 195.036 são presos provisorios (www.portal.mj.gov.br/depen).

2“Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judicias”.

3Art. 1º. O art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 306. (…)
§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.
§ 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310.
§ 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.
§ 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.
§ 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.” (NR)

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