Thiago Gomes Anastácio,
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Artigo originalmente publicado no Portal JOTA, em 27 de Setembro de 2017
A implementação das audiências de custódia no sistema judiciário brasileiro passou a ser efetivada no ano de 2015 a partir de intensa atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
A despeito da recente aplicação da audiência de custódia por nossos tribunais, a necessidade de se apresentar o preso em flagrante em até vinte e quatro horas à autoridade judicial já era reconhecida desde a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7, 5) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 9, 3), os quais deveriam estar plenamente em vigor em nosso ordenamento jurídico desde o início dos anos noventa.
A efetiva apresentação do preso à autoridade judicial vem, portanto, para dar eficácia aos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo Brasil há muitos anos.
Como dito, em 2015 o CNJ firmou parceria para que a audiência de custodia passasse a ser realidade em nossos tribunais. A partir do termo de cooperação técnica nº 7/2015, o Conselho Nacional de Justiça se comprometeu a promover a articulação com tribunais de todo o país, para a implementação do “Projeto Audiência de Custódia”, prioritariamente nas capitais dos Estados federados.
Com vistas a dar maior efetividade ao projeto, o CNJ firmou ainda o Termos de Cooperação Técnica nº 16/2015 com o Conselho da Justiça Federal para que se promovesse a realização das audiências de custódia também nos Tribunais Regionais Federais.
O direito de o preso ser apresentado em até vinte e quatro horas a um juiz é legítimo e a iniciativa do Conselho Nacional Justiça de se antecipar ao Congresso Federal – que ainda não efetivou a necessária mudança no Código de Processo Penal para inclusão da obrigatoriedade da audiência de custódia[1] – deve ser louvada.
Além disso, o processo de adesão dos entes federados ao “Projeto Audiência de Custódia” mostrou-se rápido: em 14 de outubro de 2015, com a instituição do projeto no Distrito Federal, ele passou a estar presente em todas as unidades da Federação[2].
Os números também mostram que o sistema judiciário está avançando na aplicação do instituto. De acordo com o CNJ, até junho deste ano haviam sido realizadas 258.485 (duzentas e cinquenta e oito mil quatrocentas e oitenta e cinco) audiências de custódia em todo o país.
Destas, 56.682 (cinquenta e seis mil seiscentos e oitenta e duas) foram realizadas no Estado de São Paulo, pioneiro na implementação do projeto. A experiência de São Paulo é, neste sentido, reveladora dos efeitos e problemas enfrentados pela audiência de custódia nestes dois anos.
Os motivos pelos quais o Conselho Nacional de Justiça implementou o Projeto “Audiência de Custódia” perpassam principalmente pela necessidade de redução da população carcerária – em especial dos chamados presos provisórios – e de se averiguar a ocorrência de violência policial nas abordagens realizadas para a efetivação do flagrante.
O Estado de São Paulo, neste contexto, registrou queda do crescimento da população carcerária nos primeiros meses de implementação da audiência, que evitaram que milhares de pessoas ingressassem como presos provisórios no sistema carcerário[3] enquanto, como reconhecido, eram detentores de direitos como a liberdade provisória.
Além disso, em 6% (seis por cento) dos casos, foi levantada a hipótese de violência policial no momento do flagrante e em diversos destes foram instaurados procedimentos para investigação.
A despeito dos números e do rápido avanço do projeto nos entes federados, a realização da audiência de custódia em algumas ocasiões não se mostra tão eficaz. A principal razão para que se apresente o preso à autoridade judicial em até vinte e quatro horas é a possibilidade de o juiz ter contato pessoal com este preso, ouvindo seu relato da situação, da forma como foi abordado e analisando os direitos constitucionalmente garantidos.
Alega-se que o relato do preso é muitas vezes desacreditado pela autoridade judicial a quem o preso é apresentado. Casos de violência policial, muitas vezes psicológica, seriam ignorados pelos juízes que alegam não haver prova explícita da violência e que o relato provavelmente se deu apenas como forma de tentar escapar à prisão; trata-se de um problema grave que afeta dos números analisados e são vários os vetores que precisam ser analisados.
De fato, o prazo de 24 horas é sobremaneira fundamental para a análise pretendida pelos contratos internacionais, já que pode o magistrado, ainda em período exíguo, analisar a situação física e psicológica do preso; por outro lado, sem a fomentação de instrumentos humanos como o maior número de magistrados, ocorre sobrecarga dos poucos que exercem essa função, verdadeiramente o primeiro filtro entre o ocorrido nas ruas e o que começará a ser escrito nas investigações e processos judiciais; e por fim, outro problema que não pode fugir da análise: sem indicativos de lesões nos presos ou situações psicológicas alteradas e visíveis, como os magistrados devem agir? Abrir investigações sobre torturas mesmo sem materialidade, acionando Corregedorias das Policias Militares e Civis para investigações fadadas ao arquivamento? Trata-se de problema que precisará ser meditado, pois atos criminosos podem escapar das vistas judiciais, assim como invencionices podem sobrecarregar o já sobrecarregado sistema correcional das polícias e judicial. Assim como é abominável qualquer prática de violência policial investigativa, igualmente abominável são as possíveis tentativas de incriminação de policiais como simples forma de buscar liberdades provisórias.
Sob outro prisma, fundamental, é importante que a autoridade judicial tenha contato pessoal com o preso para que tenha conhecimento de suas características pessoais, como no caso de presas gestantes, indivíduos que sustentam sozinhos seus filhos menores de idade e presos com enfermidades severas que não poderiam receber o tratamento adequado se inseridos no sistema carcerário.
No entanto, mesmo este contato muitas vezes é insuficiente para que os magistrados reconheçam a complexidade da situação e apliquem as necessárias medidas cautelares à prisão, impondo prisões desnecessárias e desproporcionais ao caso concreto.
Desta forma, importante reconhecer os avanços atingidos nestes anos com a pulverização da audiência de custódia por todo o país, mas também enxergar que o principal para se atingir os benefícios buscados seria a união da audiência de custódia com a adequação das decisões judiciais à realidade carcerária do país, que sofre com a superlotação e a imposição de condições subumanas àqueles ali inseridos. Não podemos mais aceitar que ilegalidades sejam sanadas com ilegalidades.
Todas as leis devem ser respeitadas. As penais, a serem cumpridas respeitando a utilidade social da reclusão (se é que ela existe) e as processuais com o fito de se evitar erros judiciários e abusos do Estado contra direitos do cidadão.
Nesse tema, discursos simplistas não ajudam. Bandido contra polícia, pessoas de bem contra pessoas do mal, devem ficar para as arenas das redes sociais, fictas. Versa-se aqui, apenas, sobre a aplicação de leis boas, comuns em todos os países civilizados do planeta.
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[1] O Projeto de Lei do Senado nº 554/2011 previa a alteração do Código de Processo Penal para incluir a previsão da realização da audiência de custódia no caso de presos em flagrante. O projeto tramitou e foi aprovado pelo Senado Federal em novembro de 2016. No entanto, foi apensado, na Câmara dos Deputados, ao Projeto de Lei nº 8045/2010, que trata da reforma do Código de Processo Penal, sofrendo, inevitavelmente, com a morosidade do processo legislativo.
[2] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil.
[3] Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80672-aumento-da-populacao-carceraria-de-sp-desacelera-apos-audiencias-de-custodia.