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As pedras que Pedro não vai atirar

Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo
Diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 16 de março de 2016.

 

Pedro* tinha 25 anos no início de fevereiro de 2008. Havia acabado de sair de uma clínica de reabilitação, pois é alcoólatra e dependente químico. Trabalhava com o pai, dono de um estacionamento na periferia de São Paulo. Em crise de abstinência, o rapaz sucumbiu e resolveu sair para tomar umas doses. Parou em um boteco pé sujo, encostou-se no balcão e pediu uma cerveja. Talvez pela fissura expressa em sua feição, incomodou uma moça que já se encontrava no estabelecimento. Ela resolveu ir embora e, no caminho, comentou com um conhecido que acabara de encontrar sobre “um cara” estranho no bar. O conhecido, interpretando mal o que lhe dissera a moça, dirigiu-se a um posto policial próximo para denunciar um assalto na birosca.

Dois milicianos para lá imediatamente foram, adentraram no local, renderam o jovem, derrubaram-no no chão, algemando-o. Imobilizado, rendido, deitado de bruços, Pedro foi alvejado pelas costas à queima roupa na coluna cervical e, por sorte, não morreu, mas sofreu horríveis consequências, ficando paraplégico. Foi então pedido reforço. O que iriam fazer com Pedro? Terminar o “serviço” não dava, mas tinham que se livrar daquele abacaxi.

Quando a segunda viatura chegou, jogaram-no “como um saco de batatas” (expressão de uma testemunha, nos autos) no banco de trás do carro e, ainda algemado, deixaram-no no Hospital Municipal mais próximo, onde por horas, esvaindo-se em sangue, aguardou socorro. Nenhum dos guardas esclareceu a qualquer profissional do hospital o que ocorrera com Pedro. Mas ele teve sorte mais uma vez ao deparar-se com um verdadeiro anjo da guarda: uma enfermeira que, por acaso, era cliente de seu estacionamento. Indignada, a enfermeira disse aos guardas para soltarem o rapaz, que sabia ser trabalhador, pois o conhecia.

Ele então foi finalmente atendido, diagnosticado com grave lesão na medula, perdendo para sempre os movimentos da cintura para baixo. Enquanto isso, a colega dos milicianos que lhes prestou reforço dirigiu-se à delegacia local para registrar o ocorrido. No boletim de ocorrência constou que Pedro estava assaltando o bar (seria uma nova modalidade, o “assalto a grito”: como pode um homem desarmado e já alcoolizado assaltar um estabelecimento sem que nenhum dos ali presentes tenha se sentido intimidado ou ameaçado?) e, ao ser abordado, tentou tomar a arma de um dos guardas, tendo ao final sido por ele alvejado na mão. Os delitos cometidos? Tentativa de roubo e resistência à prisão, esta última seguida de lesão corporal.

O pai do rapaz, inconformado com a tramoia, persistiu durante dias até conseguir entender o que realmente ocorrera. Localizou diversas testemunhas que estavam presentes no local, inclusive a moça e o dono do bar, tendo delas obtido a informação de que o filho havia sido, na realidade, vítima do despreparo e da truculência dos guardas. Pediu então ajuda à sua sobrinha, por acaso uma advogada criminalista que, por sua vez, pôde contar com o precioso auxílio de amigos e amigos de seus amigos (colegas criminalistas e civilistas, jornalistas da Rede Globo de Televisão e médicos legistas particulares, todos eles profissionais sérios e de reputação suficiente para jamais compactuar com mentiras) na desconstrução daquela farsa.

E, assim, graças a tantas pessoas empenhadas em ajudar Pedro a buscar a verdade, ela enfim veio à tona e os guardas foram processados por tentativa de homicídio e tortura. Cinco anos se passaram até que em 2013 os acusadA os foram levados a julgamento pelo 3º Tribunal do Júri de São Paulo. Entrevado para sempre em uma cadeira de rodas, ele finalmente presenciou a condenação de seu algoz a 12 anos de reclusão por tentativa de homicídio qualificado. O outro foi absolvido, pois os jurados entenderam não haver provas de sua participação na barbárie.

A história de Pedro poderia, entretanto, ter sido diferente. Não fosse sua boa estrela, ele poderia estar morto, ou então preso pela tentativa de um roubo que não cometeu. Mas ele é branco e de classe média. Ufa! Tem também um pai obstinado, que trabalhando melhor que muito investigador de polícia, resgatou a verdade. Tem uma prima advogada que tem muitos amigos. Os amigos da prima também têm amigos e todos, todos, o ajudaram a mostrar à Polícia Civil e à Justiça sua inocência. Teve, na defesa de seus interesses, o incansável trabalho de um brilhante jovem advogado. Contou também com a fala na Tribuna de um monstro da advocacia criminal, que rogou pela condenação daqueles que tiraram dele não só os movimentos de suas pernas, mas a esperança do futuro que ele um dia sonhou ter.

O miliciano que atirou apelou da decisão e hoje, passados mais de oito anos dos fatos, aguarda em liberdade que seu recurso seja julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Diante da expectativa de que em breve a condenação poderá vir a ser confirmada pela Corte de apelação, muitos então poderiam imaginar que o Pedro comemorou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal autorizando o cumprimento de pena após julgamento em 2ª instância, ainda que pendentes recursos do réu.

Pedro, assim como a ampla maioria dos brasileiros, é contra a impunidade, mas, contrariando as expectativas, não festeja a nova orientação da Suprema Corte, pois sabe que muitos jovens de periferia não têm a mesma sorte que ele teve. Afinal, quantos Pedros, pretos e pobres, não são diariamente vítimas da violência policial e da supressão de seus direitos mais básicos, transmudados em “criminosos” de conveniência? Quantos boletins de ocorrência relatando assassinatos cometidos por policiais não são registrados com a esdrúxula tipificação de resistência à prisão seguida de morte? Quantos inocentes não são presos, processados e condenados por crimes que não cometeram, confirmados apenas pelas palavras de policiais/condutores/testemunhas?

Pedro ainda acredita que seu carrasco será enfim preso pelo mal que lhe causou. Mas sabe que há hora certa para isso: o tal trânsito em julgado da sentença condenatória, não por acaso previsto na Constituição da República. É que, para ele, não há sentimento de vingança ou vontade popular que justifiquem a possibilidade de que outras tantas injustiças sejam sacramentadas.

* nome trocado para preservar a identidade do protagonista.

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