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As 10 medidas do MPF e a restrição ao HC

Renato Marques Martins
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 21 de setembro de 2016.

A título de “Aperfeiçoamento do Sistema Recursal Penal”, a 04ª das chamadas “10 Medidas Contra a Corrupção” propostas pelo MPF[1] prevê, dentre outros inúmeros obstáculos e restrições ao habeas corpus[2], a proibição de concessão do writ se a prisão ou ameaça de prisão do paciente não for “atual”, isto é, o writ só seria cabível se o paciente estivesse efetivamente preso ou com prisão decretada. Por que isso?

Ao longo da evolução democrática das leis, da jurisprudência e da doutrina brasileiras, o habeas corpus passou a ser usado e admitido “quando, mesmo que de forma remota, há possibilidade do paciente ter sua liberdade de locomoção restrita”[3] ou “mesmo que se trate de cerceamento potencial, possível ou provável”[4].

Isto é, não é preciso aguardar-se que um processo manifestamente nulo prossiga até o seu trânsito final para, somente depois de o cidadão ser preso, admitir-se o uso do habeas corpus para sanar uma ilegalidade que poderia ter sido expungida dos autos desde o seu início, raciocínio que igualmente vale em relação à proposta de restringir o HC somente para os casos em que o cidadão tiver a prisão preventiva decretada.

Na verdade, o que deseja o MPF é retirar do HC uma de suas mais importantes funções que é ser uma “ação mandamental a tutelar, não apenas diretamente a liberdade física dos indivíduos, mas as demais hipóteses de coação ilegal que, de algum modo, estejam relacionadas com o status libertatis, incluindo o processo, do qual não se espera tão-só uma decisão justa, mas um tramitar escorreito e a salvo de nulidades (due process of law)”[5].

Vale dizer, o HC tem uma função profilática, de prevenir que processos manifestamente ilegais marchem constrangendo o cidadão para somente serem anulados em 2ª instância, o que, aí sim, acarretará ainda mais impunidade e tornará o Poder Judiciário ainda mais ineficiente e custoso do que já é. Explica-se: se o processo somente for sanado no julgamento da apelação, certamente terá passado tanto tempo que, muito provavelmente, ocorrerá a prescrição. E se não estiver prescrito, o que se terá é a repetição de atos que seriam absolutamente desnecessários se, em primeiro lugar, as normas constitucionais e processuais penais tivessem sido observadas ou, em caso negativo, se o acusado tivesse tido a oportunidade de questionar a nulidade do processo em momento anterior por meio do HC.

Ou seja, ao invés de aperfeiçoar, a proposta do MPF só piora o sistema, e muito. Ao fim e ao cabo, o que o MPF quer é poder submeter o cidadão a um processo ilegal e impedir que os tribunais, por meio do habeas corpus, corrijam as ilicitudes em tempo. E tanto isso é verdade que as medidas propõem a proibição da concessão de habeas corpus de ofício, a revelar que ou o MPF desconfia da lisura da magistratura ou é realmente a favor de ilegalidades, em nome da tão proclamada Justiça que pregam.

Ora, se um Tribunal enxerga uma manifesta ilegalidade a constranger o cidadão, por que o MPF quer impedir que os desembargadores e ministros corrijam o erro judiciário de ofício? Não o fariam por ocasião do julgamento da apelação? A não ser que o MPF acredite que no julgamento das apelações os tribunais não terão coragem de anular os processos, mesmo que manifestamente ilegais, apenas para não terem que reconhecer a prescrição.

O cidadão sofre com uma demorada tramitação processual cuja culpa não lhe pode ser atribuída. Há um estudo do próprio Ministério da Justiça apontando que a causa da morosidade da Justiça, dentre outras coisas, é a falta de planejamento e rotinas complexas: “Os cartórios judiciais não dispõem de administração profissional e não utilizam ferramental técnico apurado para planejar, organizar, controlar, dirigir e coordenar os recursos humanos, financeiros, materiais e tecnológicos com base científica. Isso pode ser apontado como responsável, dentre outras disfunções, por filas, tempos de ciclos extensos e indesejados, contro.es em duplicidade, falta de informação ou informação sem credibilidade, estresse e falta de realização profissional dos recursos humanos”.[6]

Assim, ao invés de restringir o cabimento do habeas corpus, deveria o MPF pugnar por um Poder Judiciário mais eficiente, com técnicas cartorárias mais avançadas, a exemplo do processo eletrônico, e eventualmente por um maior número de ministros nos tribunais superiores.

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[1] Disponível emhttp://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas, acesso em 14.09.16
[2]

A 04ª Medida propõe a seguinte alteração legislativa: “Art. 647. Dar-se-áhabeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal que prejudique diretamente sua liberdade atual de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.

  • 1º A ordem de habeas corpus não será concedida:

I – de ofício, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;

II – em caráter liminar, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente e ainda houver sido trasladado o inteiro teor dos autos ou este houver subido por empréstimo;

III – com supressão de instância;

IV – sem prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem da ação penal, salvo quando for impetrado para evitar prisão manifestamente ilegal e implicar a soltura imediata do paciente;

V – para discutir nulidade, trancar investigação ou processo criminal em curso, salvo se o paciente estiver preso ou na iminência de o ser e o reconhecimento da nulidade ou da ilegalidade da decisão que deu causa à instauração de investigação ou de processo criminal tenha efeito direto e imediato no direito de ir e vir.

  • 2º O habeas corpus não poderá ser utilizado como sucedâneo de recurso, previsto ou não na lei processual penal.” (NR)

“Art. 652. Se o habeas corpus for concedido em virtude da decretação da nulidade de ato processual, renovar-se-ão apenas o ato anulado e os que diretamente dele dependam, aproveitando-se os demais.

Parágrafo único. No caso previsto no caput:

I – facultar-se-á às partes ratificar ou aditar suas manifestações posteriores ao ato cuja nulidade tenha sido decretada;

II – o juiz ou tribunal que pronunciar a nulidade declarará os atos a que ela se estende, demonstrando expressa e individualizadamente a relação de dependência ou consequência e ordenando as providências necessárias para sua retificação ou renovação.” (NR)

“Art. 664. Recebidas as informações, ou dispensadas, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte.

  • 1º O Ministério Público e o impetrante serão previamente intimados, por meio idôneo, sobre a data de julgamento do habeas corpus.
  • 2º A decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.” (NR)

[3] TACRIM SP, 2ª C., HC 438.892/6, Rel. Silvério Ribeiro, j. 24.04.03, rolo/flash 1573/393 apud Alberto Silva Franco, Rui Stoco in Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2004, vol. I, p. 1083.
[4] TACRIMSP, AP, Rel. Canguçu de Almeida, RT 611/373.
[5] TJSP, HC nº 348.952, 3ª Câmara Criminal, Rel. Des. Gonçalves Nogueira, apud Alberto Silva Franco, Rui Stoco, op. cit. p. 1082, no mesmo sentido a doutrina de Grinover, Magalhães e Scarance, para quem o habeas corpus passou a ter cabimento para se coarctar coação ilegal ou abuso de poder “mesmo em situações em que a prisão constitua evento possível apenas a longo prazo” (Recursos no processo penal, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 6ª ed., 2ª tir., 2009, p. 272).
[6] Análise da Gestão e Funcionamento dos Cartórios Judiciais realizado pela Secretaria de Reforma do judiciário do Ministério da Justiça (junho de 2007), com apoio da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV), coordenado por Paulo Eduardo Alves da Silva.