Ana Fernanda Ayres Dellosso e Domitila Köhler
Integrantes do Grupo de Litigância Estratégica do IDDD
Guimarães Rosa conta a estória do menino que cresceu à margem de um rio a esperar o pai que embarcou numa canoa, mas não foi nem retornou – permaneceu na chamada terceira margem do rio.
Nas palavras daquela criança, o pai “não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”[1].
Há uma terceira margem sendo imposta no direito penal de hoje (especialmente no direito penal dos tempos das operações inflacionadas em fases).
Falamos de investigações sem rumos nem objeto certo que perduram por anos. Inquéritos aos quais não é dado um fim, uma decisão, um destino certo – seja pela dita complexidade, seja pela mera vontade dos órgãos de investigação.
Um exemplo: há poucos meses, o Superior Tribunal de Justiça viu-se diante de investigação que durava mais de 12 (doze) anos, sem que houvesse oferecimento de denúncia. Uma das investigadas impetrou habeas corpus e, em recurso, chegou à Corte Superior com pedido de trancamento do inquérito policial contra ela instaurado, com fundamento no excesso de prazo para conclusão das investigações.
No debate que se seguiu, o Ministro Sebastião Reis Júnior, relator do recurso, contrapôs a duração razoável do processo ao direito de punir do Estado e, no caso concreto, a complexidade de investigações que contavam com indícios de crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, crimes contra o sistema financeiro e outros, por meio de associação criminosa em diversos estados. Mas deu provimento ao recurso para encerrar o inquérito, pois concluiu ser “inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo) – cláusula pétrea instituída expressamente na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 45/2004 –, um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa”[2].
O único voto vencido – da Ministra Maria Thereza de Assis Moura – anuiu à tese de que “deve ser observada a garantia da duração razoável do processo, inclusive na fase administrativa”, mas entendeu pela sua inaplicabilidade no caso concreto.
Tal discussão sobre a duração das investigações não é de todo nova e, embora raros, há outros julgados pelo trancamento de inquéritos por excesso de prazo e ausência de justa causa (STJ, RHC 58.138/PE, 6ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 4.2.2016; STJ, HC 345.349/TO, 6ª Turma, Rel. Min. Néfi Cordeiro, DJe 10.6.2016).
Todavia, o mais visto é que, ao invés da duração razoável do processo, meça-se o tempo das investigações por outros dois parâmetros: a existência de prisão e o prazo prescricional dos crimes investigados (quando ao menos estes estão claros). Mesmo que, desde 1941, o Código de Processo Penal diga que as pessoas soltas devem ser investigadas em trinta dias, esse prazo acabou por se chamar impróprio, sujeito a renovações justificadas na complexidade dos fatos sob apuração. Ou seja, acabou por ser lei morta, propositadamente esquecida…
E até quando? Até a ocorrência da prescrição em abstrato do crime investigado[3]. Anos a perder de vista, em muitos casos que – diga-se a verdade – investigam todo e qualquer crime para investigar diferentes alvos.
É mesmo óbvio que o limite prescricional não é o que basta para reduzir o número de investigações sem rumo. E tanto é assim que, no ano passado, o Ministério Público Federal, por meio da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, aprovou a Orientação 26/2016: “A antiguidade do fato investigado, o esgotamento das diligências investigatórias razoavelmente exigíveis ou a inexistência de linha investigatória potencialmente idônea, adequadamente sopesados no caso concreto, justificam o arquivamento da investigação, sem prejuízo do disposto no art. 18 do CPP”[4].
Outra regra que caminha para o túmulo, pois a estas questões soma-se uma “nova moda” de investigações que se expandem em tentáculos e mil e uma fases de operações policiais. Muitas vezes, o mesmo inquérito embasa dezenas de ações penais e permanece aberto, a investigar não se sabe mais o que. Autuadas em separado, ações penais seguem seu trâmite, mas o inquérito originário continua aberto “ao que vier”, sem que haja uma cota ou despacho a especificar o que restou a apurar. Permanecem ativos, mirando pessoas e suas vidas, não fatos.
Se alguns dos investigados são denunciados, o que ocorre com os demais? Permanecem alvos eternos de inquéritos sem fim? Mesmo que a própria legislação traga seus remédios, prevendo a possibilidade de desarquivar o inquérito se novas provas forem encontradas?
É preciso cuidado. O mesmo cuidado que se tem para conduzir investigações sérias e punir crimes graves – e até, dizem, mudar o país e extirpar a impunidade – é o necessário para saber a hora de parar. A hora de partir.
Mas a canoa, muitas vezes, não parte.
Investigações sem fim nada trazem de bom, nem à sociedade, nem aos investigados. Ao contrário, estarrecem. Prolongam a angústia dos que jamais se acostumam a ser objeto de persecução e aguardam um desfecho. Nos dizeres de Guimarães Rosa: “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. (…). A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade”. E o inquérito, quanto mais em tempos punitivos, é uma pena na forma de espera.
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[1]. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. 78.
[2]. STJ, RHC 61.451/MG, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 15.3.2017.
[3]. “Não altera esse entendimento o texto do art. 10, caput, do Código de Processo Penal, que assinala o prazo de trinta dias para a conclusão do inquérito, estando o réu solto. É que se trata de prazo impróprio, que a lei não prevê qualquer consequência processual, máxime a preclusão. Apenas o Estado, em virtude da prescrição, pode perder o direito de ver definida a situação jurídica do investigado” (STF, HC 107.381/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe 17.5.2011).
[4]. Acesso em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/orientacoes/documentos/orientacao-no-26.