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Em SP, de cada 4 pessoas que deveriam ter deixado a prisão no primeiro ano da pandemia, 3 foram mantidas atrás das grades por juízes

10 de agosto de 2021
Mutirão do IDDD que soltou mais de 100 pessoas enquadradas em recomendação de desencarceramento do CNJ, identificou que Justiça só concedeu liberdade a 26% dos quase 450 atendidos que tinham direito

Relatório do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) divulgado nesta terça-feira (10/08) mostra que a esmagadora maioria (74%) das pessoas presas que deveriam ter sido beneficiadas pela Recomendação n.º 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com liberdade provisória ou outras medidas alternativas à prisão, foram mantidas no cárcere durante o primeiro ano da pandemia.

Publicada em março de 2020, a Recomendação 62 do CNJ convocou magistrados brasileiros a prestarem especial atenção à necessidade de redução da população carcerária nos casos de idosos, demais grupos de risco da Covid-19, além de acusados de crimes sem violência ou grave ameaça. A orientação se deu em razão das condições insalubres das prisões do país, locais considerados de maior transmissibilidade de doenças infecciosas, dada a superlotação e impossibilidade de cumprir protocolos sanitários, a começar pelo distanciamento físico e dificuldades na circulação do ar.

Reunindo informações de 448 atendidos por um grupo com 92 advogados e 11 estudantes de Direito, entre abril de 2020 e janeiro deste ano, o levantamento do IDDD revelou que mesmo as 118 pessoas soltas (26% do total), só o foram após 207 pedidos de liberdade negados em instâncias anteriores.

“Os resultados desse mutirão carcerário são preocupantes. O Judiciário, que buscou proteger seus membros deixando de realizar uma série de procedimentos e atos processuais presenciais, se desvencilhou da responsabilidade com a preservação das vidas de pessoas sob custódia do Estado. E isso está documentado não só nos números, mas também no conteúdo de suas determinações”, observa o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Leonardo se refere a decisões como a proferida por uma Vara de Embu das Artes, SP, em maio de 2020, negando pedido de liberdade a um jovem de 21 anos, acusado de tráfico e preso no Centro de Detenção Provisória II (CDPII) de Osasco. “Em meio à crise de saúde pública que vivenciamos, a libertação do agente poderia representar risco a sua saúde, considerando não termos notícias de presos infectados no presídio do agente (sic)”, afirmou o magistrado. À época, a unidade apresentava taxa de contágio de mais de 25%, isto é, aproximadamente oito vezes maior que a do município em que o CDP está localizado.

Negacionismo no Judiciário

Os números mostram ainda que, apesar de 100% dos pedidos dos advogados terem como base a Recomendação 62 – e, portanto, a emergência sanitária -, em mais da metade (52,5%) das concessões de liberdade a pandemia nem sequer foi mencionada pelos magistrados.

“Se os juízes constataram a desnecessidade da prisão por motivos que não estavam relacionados à pandemia, precisamos perguntar, então, por que elas estavam presas”, questiona Vivian Peres, assessora de projetos do IDDD. Ela lembra que é papel do Poder Judiciário estar atento à situação processual das pessoas no cárcere e cita o art. 316 do Código de Processo Penal, que determina a realização de revisões periódicas por parte dos juízes sobre as prisões que decretam.

O estudo do IDDD indica que a lei não tem sido cumprida, uma vez que metade das pessoas que conseguiram a liberdade já tinham esse direito por motivos que não estão relacionados à proteção à saúde em razão da pandemia. O fenômeno tem extensão ainda desconhecida num país com quase 760 mil pessoas presas, que provavelmente também não têm sua situação reavaliada por juízes e desembargadores individualmente.

Ao analisar as decisões que mantiveram as prisões, o IDDD identificou que 39% (81) delas se referiam explicitamente à Recomendação 62, fato que sugere que os magistrados citam a orientação muito mais para deslegitimá-la do que para reforçar seu caráter de medida de proteção à vida e à saúde.

“Tendo em vista que a taxa de menção ao documento do CNJ nos decretos favoráveis foi de 28% contra 39% nos negativos, concluímos que a Recomendação 62 acabou sendo mais usada pelos magistrados para negar do que para conceder liberdade. A orientação foi sendo esvaziada por uma atitude negacionista que coloca em risco a vida das pessoas encarceradas”, conclui Peres.

Se em março de 2020, antes da primeira morte por Covid-19 em um presídio brasileiro, a Recomendação 62 do CNJ sinalizava para juristas preocupação do órgão com a vida e a saúde das pessoas encarceradas, a prática mostrou que a orientação não tem atingido seu propósito humanitário.

“Esse diagnóstico do IDDD permite suscitar, inclusive, questões a respeito da responsabilidade do Judiciário em mortes evitáveis durante essa calamidade. É um documento que traz fortes indicativos de deturpação do papel de garantidor da lei e de direitos fundamentais por parte das autoridades”, finaliza o presidente do IDDD, Hugo Leonardo.

Confira o relatório completo da pesquisa aqui.

 

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