O ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu, em decisão monocrática, publicada no dia 16 de junho, extinguir a pena de multa imposta a uma mulher que está em cumprimento de pena no regime aberto. O ministro se baseou no Tema 931 do STJ, que reconhece o direito à extinção da punibilidade por hipossuficiência, independentemente do pagamento da multa. Porém, o Ministério Público paulista recorreu da decisão solicitando que o caso seja julgado pelo colegiado.
O caso é acompanhado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) desde 2022, quando a mulher foi atendida em mutirão de assistência jurídica para pessoas condenadas à pena de multa, realizado pela organização.
A mulher havia sido condenada em 2015 por tráfico de drogas e associação para o tráfico pela 1ª Vara Criminal da Comarca de Francisco Morato, que estabeleceu uma pena de nove anos de reclusão com início em regime fechado, além do pagamento de 1.300 dias-multa. Em 2020, o Ministério Público deu início à execução da pena de multa, calculada no valor de R$ 26.953,33. Foi realizada uma busca judicial nas contas bancárias da assistida, encontrando e bloqueando pouco menos de mil reais.
Em 2024, a defesa apresentou o holerite da sentenciada, comprovando que ela aufere pouco mais de um salário-mínimo, tendo dois filhos dependentes. Ainda assim, a Justiça paulista determinou que 1/4 do seu salário fosse descontado mensalmente para pagar a multa. Nesse ritmo, levaria cerca de 11 anos para quitar a dívida.
O IDDD entrou com recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo pedindo a extinção da multa com base no Tema 931 do STJ. Apesar das provas apresentadas, o Ministério Público paulista se opôs ao pedido, alegando ausência de comprovação de hipossuficiência, mesmo após o valor encontrado na busca por bens para bloqueio judicial ter sido inferior a mil reais. A Justiça paulista manteve a execução da multa, com o desconto do salário. Foi em face de tal decisão que o IDDD interpôs Recurso Especial no STJ, contando com o apoio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), da Conectas Direitos Humanos, da Associação de Familiares e amigos/as de presos/as e internos/as da Fundação Casa (Amparar) e do Instituto Pro Bono, organizações que atuam como amigos da corte (amicus curiae) no processo. Foi esse recurso que culminou na decisão do ministro Sebastião Reis Júnior.
Assim como a ré do caso, 84,1% das mulheres atendidas no mutirão do IDDD declararam ter filhos e/ou outros dependentes, das quais 62,3% eram as únicas responsáveis pelos cuidados dessas pessoas.
Na decisão, o ministro Reis considerou que a discrepância entre a renda da ré e o valor da multa evidencia sua incapacidade financeira para arcar com a pena pecuniária. “Nesse cenário, é nítido que logrou comprovar a hipossuficiência alegada, sendo o caso de extinguir a execução da multa que lhe fora aplicada, nos termos da tese fixada no julgamento do Tema n. 931/STJ, notadamente porque não se constituiu nenhuma prova em sentido contrário na execução”, traz a decisão.
A pena de multa é uma sanção financeira aplicada a pessoas condenadas por determinados crimes, como tráfico de drogas e furto, e pode ser imposta isoladamente ou em conjunto com a pena privativa de liberdade. Os valores são definidos pelo juiz no momento da sentença, conforme parâmetros do Código de Processo Penal, a partir de um cálculo de dias-multa multiplicado por uma parcela do salário-mínimo vigente no momento da execução da cobrança. Atualmente, por exemplo, uma pessoa condenada por tráfico de drogas, recebe uma pena de multa de no mínimo R$ 25 mil, mesmo para pequenas quantidades de droga. Já no crime de associação para o tráfico, o valor inicial hoje é R$ 35 mil.
Se mantida, a decisão gerada a partir do recurso especial apresentado pelo IDDD ao STJ abre um precedente importante para casos semelhantes relacionados à pena de multa. “A execução da pena de multa contra uma mulher pobre, que já enfrenta os estigmas de um sistema penal excludente, constitui afronta direta à Constituição, à legislação infraconstitucional e à essência mesma da reintegração social, além de provocar inequívoco dissídio jurisprudencial”, afirma a peça de defesa (disponível aqui) apresentada pelo IDDD ao STJ, assinada por Theuan Carvalho Gomes, diretor de litigância estratégica do instituto, que atuou no caso ao lado do associado Caio Nilsen e do assistente de programas Martim Landgraf.
Agora, o ministro relator irá definir se ele se retrata da sua própria decisão ou se encaminha o processo para julgamento pelo colegiado. Não há um prazo estabelecido no regramento da corte para que isso ocorra.
Atuação do IDDD
Desde 2022, o IDDD tem trabalhado para evidenciar os impactos da pena de multa na vida de pessoas que já passaram pelo sistema prisional. Entre as ações realizadas estão: a organização de mutirões jurídicos, a elaboração da pesquisa “Pena de multa, sentenças de exclusão” (2024), a produção de materiais de apoio para pessoas condenadas e seus familiares, e a oferta de cursos para servidores públicos que atendem egressos do cárcere. A organização também atuou em litígios estratégicos no STJ e no STF, além de ter contribuído com o “Estudo sobre a Pena de Multa no Brasil -Inadimplemento e Seus Efeitos Para a Reintegração Social de Pessoas Egressas do Sistema Prisional”, realizado pela Senappen, do Ministério da Justiça. Outra frente de atuação foi a defesa da inclusão da pena de multa nos decretos presidenciais de indulto natalino. Em 2023 e 2024, o indulto passou a beneficiar pessoas com multas de até R$ 20 mil.