No dia 9 de junho de 2025, sem qualquer debate ou consulta prévia à sociedade civil ou à própria carreira, a Defensora Pública-Geral (DPG) de São Paulo, Luciana Jordão, protocolou um anteprojeto de lei complementar na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), propondo graves alterações na estrutura organizacional do órgão.
A reestruturação institucional prevista pelo texto fragiliza de sobremaneira a atuação da Defensoria na defesa de direitos difusos e coletivos – uma de suas funções constitucionais – e concentra poderes decisórios na cúpula administrativa da DPE, reduzindo significativamente a participação democrática na gestão.
Essas mudanças afetam não só o corpo de defensores e defensoras, mas, sobretudo, a população em situação de vulnerabilidade que depende de uma atuação combativa e autônoma da Defensoria Pública.
As organizações da sociedade civil, coletivos e movimentos sociais subscritos abaixo, vêm, por meio desta nota pública, manifestar-se contrários à esta Proposta de Lei Complementar.
A criação do chamado “Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais” se destaca, pois dá à Administração Superior o controle sobre diretrizes de atuação em litígios coletivos e estruturais – justamente aqueles com maior impacto social – , reduzindo mecanismos de transparência e participação da instituição, a autonomia de núcleos especializados e a independência funcional de defensoras e defensores públicos na tutela coletiva. Na leitura da sociedade civil organizada, trata-se de um grupo de intervenção que limita o próprio acesso à justiça da população.
A Defensoria Pública de São Paulo conta com dez núcleos especializados, são eles: cidadania e direitos humanos; infância e juventude; habitação e urbanismo; segunda instância e tribunais superiores; situação carcerária; promoção e defesa dos direitos das mulheres; direitos da pessoa idosa e da pessoa com deficiência; defesa do consumidor; promoção e igualdade racial e defesa dos povos e comunidades tradicionais; e defesa da diversidade sexual e de gênero. Todos estes núcleos são essenciais para para garantir uma atuação mais estratégica, técnica e comprometida com a defesa dos direitos fundamentais das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Para além do atendimento realizado para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, portanto, a Defensoria, por meio de seus núcleos, têm uma atuação estratégica em questões de grande relevância social. Seja por meio de debates sérios com a sociedade civil, especialmente com as pessoas diretamente afetadas, seja por meio da produção técnica qualificada, os núcleos têm legitimidade de acionar tribunais sempre que a defesa de direitos individuais, difusos e coletivos se fizer necessária.
Caso aprovado o projeto de lei, além da quebra da autonomia desses órgãos, a proposta orçamentária da instituição, que antes exigia aprovação do Conselho Superior, passará a depender apenas da oitiva do grupo, de modo que o controle e participação sobre a destinação dos recursos públicos também sejam enfraquecidos e, novamente, concentrando, o poder de decisão na Defensoria Pública-Geral. Além disso, a possibilidade de tornar virtuais ou híbridas as reuniões do Conselho podem comprometer o Momento Aberto, único espaço de participação social no Conselho Superior da Defensoria Pública, que tem sido usado por pessoas atendidas pelo órgão, organizações da sociedade civil e pessoas servidoras da instituição.
Destaca-se que uma primeira versão circulada pela administração na sexta, dia 6, previa a extinção do “momento aberto”. Esse trecho foi, posteriormente, retirado do projeto, alegando-se “erro material”. De fato, um texto elaborado e enviado às pressas, sem consultas ou revisão, é mais suscetível a apresentar esse – e tantos outros – erros.
A instituição das Defensorias Públicas, pela Constituição Federal de 1988, marca um importante início de democratização do acesso à Justiça no Brasil, especialmente após décadas de regimes autoritários e séculos de colonização escravista no país.
A Carta Magna passou a reconhecer as Defensorias como essenciais à função jurisdicional do Estado e com o dever de “promover a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita”. Tal incumbência reflete, nos termos da própria Constituição, o compromisso com o próprio Estado Democrático de Direito.
Apesar da previsão de 1988, o estado de São Paulo só instituiu sua própria Defensoria no ano de 2006, após muita mobilização social. Um dos marcos dessa reivindicação ocorreu em 2002, quando foi lançado o “Movimento pela Criação da Defensoria Pública em São Paulo”. O movimento, já à época, defendia uma instituição independente, transparente em que “seus profissionais deveriam servir exclusivamente aos cidadãos, e não ao governo, com um compromisso com a proteção e promoção dos direitos humanos”.
Desde janeiro de 2006, quando foi aprovada a Lei Complementar nº 988, que cria a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, diversos foram os momentos em que a sociedade civil esteve ao lado da instituição para ampliação e estruturação da carreira. Desde a sua instituição, movimentos e organizações têm demandado e contribuído com a atuação estratégica da Defensoria, elaborando pesquisas e estabelecendo diálogos e parcerias históricas na construção/elaboração de demandas coletivas e garantia de direitos.
Quase 20 anos depois da criação da Defensoria do estado, recuperar a história da instituição, que teve a participação popular como princípio e motor, se faz necessário para resgatar o ideal de luta por justiça para as populações que mais necessitam. São as pessoas atingidas pela violência estatal e desastres socioambientais; os povos e comunidades tradicionais; as pessoas privadas de liberdade; as comunidades migrantes; as crianças e os adolescentes e demais grupos afetados pelas desigualdades raciais e socioeconômicas que mais necessitam e utilizam os serviços prestados pela Defensoria, instituição que oferece uma das poucas possibilidades de acesso à justiça integral e gratuita no Brasil.
Assim, considerando que a autonomia funcional da Defensoria Pública relaciona-se com o espaço de liberdade institucional para realizar suas atribuições e com o objetivo de alcançar as finalidades institucionais e constitucionais, guiando-se pelas leis e pela Constituição, livre de ingerências externas, notadamente dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, as alterações que visam limitar a atuação dos núcleos e excluir a sociedade civil do diálogo e construção de estratégias para a defesa de direitos devem ser rejeitadas, pois são medidas autoritárias, e, portanto, estão na contramão das garantias do Estado Democrático de Direito.
Assinam esta nota:
- Afetos filiada União dos Movimentos de Moradia de São Paulo
- Agenda Nacional pelo Desencarceramento
- Articulação Vila Andrade
- Associação 13 de Agosto – Mães de Osasco e Barueri
- Associação Amparar
- Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco AMAR
- Associação Filantrópica Santa Clara
- Associação de favelas de São José dos Campos / SP
- Associação dos Professores(as) de Filosofia e Filósofos(as) de São Paulo – APROFFESP
- Associação Habilitação do Bem Viver Taboão da Serra
- Associação de Familiares e Amigos de Presos e Egressos – AFAPE
- Associação de Moradores da Rua João Carlos da Silva e Adjacências do Bairro São Manoel, Santos/SP
- Associação de Apoio aos direitos humanos do alto Tietê
- Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude
- Associação de moradores Pantanal Capela do Socorro
- Associação Cultural José Marti do Rio de Janeiro
- Associação de moradores do Jardim D’Abril
- Associação cultural união de bairros
- Banho pra Geral
- Cedeca Sapopemba
- Cedeca Rio de Janeiro
- Central de Movimentos Populares – CMP
- Centro de Direitos Humanos de Sapopemba
- Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
- Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP)
- Centro de Referência e Resgate da Cultura Afro Brasileira e Indígena Acaçá Axé Odô – CRRCABI
- Coletivo Shireen Abu Akleh de Jornalistas Contra o Genocídio
- Coletivo lgbt de Itapecerica da Serra
- Coletivo Mulheres de Luta do Jardin Heplin
- Conectas Direitos Humanos
- Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama
- Comissão Justiça e Paz de São Paulo
- Coletivo Feminista Classista Antirracista Maria vai com as Outras
- Equipe São Paulo – CIMI Sul (Conselho Indigenista Missionário)
- Fórum da cidade de São Paulo em Defesa da População em Situação de Rua
- Fórum de Defesa da Criança e do Adolescente do Lajeado
- Fórum Popular de Segurança Pública e Política de Drogas de São Paulo
- Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas (FFLCH-USP)
- Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo
- Frente Estadual pelo Desencarceramento do Piauí
- Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro
- Frente Estadual pelo Desencarceramento do Espírito Santo
- Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo
- Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo
- Frente Nacional de Luta campo e cidade
- Frente por Moradia da Baixada Santista
- Frente Negra Revolucionária
- Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos / UFSCar
- Grupo Tortura Nunca Mais – SP
- Grupo Operária Internacionalista – Jornal Palavra Operária
- ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
- Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
- Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas
- Instituto Resgata CIdadão
- Instituto Rede
- Instituto Paulo Fonteles de Direitos Humanos
- Instituto Pro Bono
- Ile Ase Ayedum
- Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial / RJ
- IDMP – Instituto de Defesa da Moradia Popular e Cidadania
- Luta Popular
- Mandato Bancada Feminista – Alesp
- Mandato Vereador Luana Alves
- Mandato Deputada Erika Hilton
- Mandato Vereadora Amanda Paschoal
- Mandato Deputado Estadual Eduardo Matarazzo Suplicy
- Mães em Luto da Zona Leste
- Maria das Graças de Jesus Xavier
- Missão Paz
- Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto
- Movimento de Familiares das Vítimas do Massacre em Paraisópolis
- Movimento candelária Nunca Mais / RJ
- Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB)
- Movimento de Mulheres Olga Benário
- Movimento candelária Nunca Mais / RJ
- Movimento de Moradia dos Encortinados, Sem Teto, Catadores de Papelão da Cidade de São Paulo – M. M. C.
- Movimento Mães de Acari / RJ
- Movimento Independente Mães de Maio
- Movimentos
- Movimento Reaja COHAB, Sem Leilão, Sem Despejo, Moradia é Direito!
- MNU – Movimento Negro Unificado
- MNU Movimento Negro Unificado SP
- Mulheres em movimento da Maré / RJ
- Mundo Produções Culturais
- NAJUP Luiza Mahin/UFRJ
- Núcleo Memórias Carandiru
- NEMOS- Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos – Pucsp
- NAJUP Luiza Mahin/UFRJ
- Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos. Pós Graduação Serviço Social PUC-SP
- Observatório do Trauma Psicopolitico (USP/UNIFESP)
- Observatório das Violências Policiais e Direitos Humanos – OVP-DH.Org
- Organização pela Federalização das investigações das Chacinas
- Plataforma JUSTA
- Pastoral Carcerária Estado de São Paulo
- Pastoral Fé e Política da Diocese de Campo Limpo
- Projeto Reparações do CAAF/Unifesp
- Promotoras Legais Populares de Santos
- Rede de comunidades e Movimento contra Violência / RJ
- Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio
- Rede Nacional de Mães e familiares de vitimas do Terrorismo do Estado
- Rede Reforma – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas
- Rede MILBi+ – Rede de apoio a Migrantes Internacionais LGBTQI+
- Sandra de Jesus, mãe do Luiz Fernando
- Secretaria de Mulheres do PT de Santos
- Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
- Sindicato dos Vidreiros no Estado de São Paulo
- Sindicato dos Psicólogos do Estado do Rio de Janeiro
- Sindicato dos Empregados Terrestres em Transportes Aquaviários e Operadores Portuários do Estado de São Paulo
- SPlutas – Proteção a/o defensores/as de direitos humanos
- Unificação das Lutas de Cortiços e Moradia – ULCM
- União dos Movimentos de Moradia de São Paulo – UMM/SP
- Uneafro Brasil