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Nota pública: Organizações da sociedade civil e instituições repudiam a aprovação da videoconferência nas audiências de custódia

O formato virtual impede a identificação de casos de tortura ou maus-tratos durante a prisão

Foto: Agência CNJ

As organizações abaixo-assinadas vêm a público repudiar a aprovação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do uso da videoconferência nas audiências de custódia. Por 9 votos a 4, os conselheiros aprovaram, na última terça-feira, dia 24, um ato normativo (0009672-61.2020.2.00.0000) que revoga o Art. 19 da Resolução n. 329, de julho/2020, o qual vedava a utilização do vídeo na custódia. O uso do recurso tecnológico descaracteriza uma função vital das audiências de custódia, que é possibilitar que juízes identifiquem casos de tortura ou maus-tratos durante a prisão. 

O uso da videoconferência aprofundará o racismo incrustado no sistema de justiça. Estudos como o da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostram que 77,4% das pessoas apresentadas às audiências de custódia no estado, entre 2017 e 2019, eram negras. Ademais, cerca de 80% dos casos de tortura ou maus-tratos foram praticados contra pessoas negras. Tal fato já foi ressaltado em documento assinado por cerca de 80 organizações e enviado ao CNJ, alertando que sobretudo a violência policial, identificada principalmente nas audiências de custódia — presenciais –, atinge com maior força pessoas negras. Assim, as audiências de custódia, pelo escopo de prevenção e combate à tortura, funcionam também como política de promoção da equidade racial. 

Essas organizações e várias outras, incansavelmente, denunciam que o uso da videoconferência inviabiliza as condições adequadas para que a pessoa custodiada possa relatar eventuais maus-tratos e tortura sofridos desde o momento da prisão até a audiência. É um direito de toda pessoa presa estar na presença de um juiz nas primeiras 24h da detenção, conforme previsto no Art. 310 do CPP, na Convenção Interamericana de Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Com essa mudança, que contraria jurisprudência pacífica do STF e o Enunciado n. 16 do próprio CNJ, no sentido de ser inviável a discussão pelo Conselho de matérias judicializadas – o tema é objeto da ADIn n. 6527 proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros –, a custódia passa a poder ser feita de maneira virtual em caráter excepcional, caso não seja viável a audiência presencial nas primeiras 24h após a prisão.

Além de sua realização à distância não encontrar respaldo legal e não cumprir com os objetivos do ato, destaca-se que, ao contrário do que sugere o voto vencedor, a dicotomia não se dá entre realizar ou não a audiência de custódia, mas sim entre realizá-la presencialmente ou à distância. Acreditamos que é possível o retorno seguro das audiências de custódia presenciais, assim como tem sido feito em nove estados (Rio de Janeiro, Roraima, Amapá, Pará, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Goiás, Sergipe e Espírito Santo). Nestes, foram realizadas mudanças nas salas de audiência para que haja distanciamento social, implementação de fluxos para a medição de temperatura das pessoas custodiadas, distribuição de equipamentos de proteção individual e higienização dos espaços, de modo a que o ato – essencial – possa ser realizado com observância das normas de segurança sanitária.

Ademais, a quantidade de dinheiro público que seria deslocado para a realização de audiências de custódia virtuais parece ser de maior monta do que a estruturação dos fóruns de maneira a serem respeitadas as diretrizes sanitárias, como aliás já ocorre nos nove estados citados, em especial passados mais de nove meses do início da pandemia no país – o que permite um conhecimento ainda maior sobre as medidas mais eficazes para evitar o contágio.

O acolhimento da vítima de violência deve se dar presencialmente para que ela se sinta à vontade para relatar eventual abuso. Isto foi bem demonstrado pelo relato aterrorizante de uma juíza, divulgado em redes sociais, sobre uma mulher que foi sodomizada no momento de sua prisão, mas só revelou o ocorrido após ter se sentido segura no local. Um fato como este não ocorrerá jamais via videoconferência nos hostis ambientes das delegacias, com a proximidade, ainda que não na mesma sala, daqueles responsáveis pela prisão e, eventualmente, pela violência sofrida.

Não se deve ignorar, também, que a responsabilidade de realizar a fiscalização sobre a regularidade da prisão, incluindo a adequação da forma de detenção, é do Poder Judiciário, que não pode se eximir do dever ao buscar transferi-lo para as Defensorias Públicas e advogados/as, como faz a nova redação do art. 19 da Res. 329/2020. O orçamento destinado às Defensorias Públicas, ainda bastante inferior ao do Judiciário e Ministério Público, reflete na falta da estrutura física e de pessoal, sendo inegável que o déficit de defensores/as públicos/as no país inviabiliza qualquer possibilidade de que todas as pessoas presas, que estarão em locais diversos, sejam acompanhadas como ocorre nas audiências presenciais. 

Como se não bastasse, apesar de estar contido no voto que ensejou a modificação do mencionado art. 19 o argumento de que a pandemia seria uma situação excepcional a admitir a custódia virtual, a norma que foi positivada não faz sequer essa ressalva, abrindo campo para que as audiências de custódia de maneira virtual continuem no período após a pandemia. Assim, basta que se levante qualquer motivo para a sua não realização de forma presencial, no que estariam incluídas “dificuldades” com a providência de escolta, a batida alegação de falta de segurança nos fóruns e toda a sorte de argumentos corriqueiros para restrição ou supressão de direitos e garantias fundamentais.   

Enfim, o Conselho Nacional de Justiça decidiu sobre matéria judicializada e discutida por ele próprio há menos de quatro meses, em desconformidade com enunciado próprio, tudo para, às custas dos direitos de pessoas, em sua maioria negras, atender a interesses questionáveis, mesmo significando colocar em maior risco a vida de pessoas negras, dando passos largos em direção ao aprofundamento do racismo estrutural tão escancarado nesses tempos.

Assinaturas:

  1. ABL – Articulação Brasileira de Lésbicas
  2. AFAPERJ
  3. Agenda Nacional pelo desencarceramento
  4. Associação de Amigos/as e Familiares de Presos/as – AMPARAR
  5. Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade MG
  6. Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco – AMAR 
  7. Associação de Mães e Familiares de Vítimas da Violência ESPÍRITO SANTO
  8. Associação de Mulheres Guerreiras – AMUGUE
  9. Associação dos Direitos Humanos de familiares e amigos dos Reeducandos do Estado do Acre
  10. Associação de Proteção e Assistência à Família dos Encarcerados-APAFE
  11. Associação Elas Existem
  12. Associação Juízes para a Democracia – AJD
  13. Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos – ANADEP
  14. Articulação de Mulheres Brasileiras
  15. CEDECA Ceará
  16. Centro de Assessoria Jurídica Universitaria – CAJU/UFC
  17. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania 
  18. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM)
  19. Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste RJ
  20. Coletivo Autônomo de Mulheres – ADELINAS
  21. Coletivo de Mães da Maré
  22. Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação
  23. Coletivo Familiares e Amigos de Presos e Presas do Amazonas 
  24. Coletivo Rosas no Deserto de familiares, egressas(os) e amigas(os) sistema prisional (DF)
  25. Coletivo Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo e Prisional do Ceará
  26. Comissão de Direito Socioeducativo da OAB/RJ
  27. Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
  28. Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ
  29. Conectas Direitos Humanos 
  30. Defensoria Pública do Estado de Goiás 
  31. Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais
  32. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
  33. Educafro
  34. Fórum Cearense de Mulheres – FCM
  35. Fórum  Permanente de Saúde do sistema prisional
  36. Fórum Social de Manguinhos
  37. Frente Distrital Pelo Desencarceramento
  38. Frente Estadual pelo Desencarceramento – BA
  39. Frente Estadual Pelo Desencarceramento do Amazonas 
  40. Frente Estadual pelo Desencarceramento do Ceará
  41. Frente Estadual Pelo Desencarceramento – MG
  42. Frente Estadual pelo Desencarceramento – RJ 
  43. Frente Estadual pelo Desencarceramento do RN
  44. Frente Estadual pelo Desencarceramento – SP 
  45. Frente pelo Desencarceramento Acre
  46. Frente pelo Desencarceramento Espírito  Santo
  47. Frente pelo Desencarceramento Goiás
  48. Frente pelo Desencarceramento Paraíba
  49. Frente pelo Desencarceramento  Rondônia
  50. Gajop – Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares
  51. Grupo de Mulheres Bordadeiras da Coroa
  52. IDEAS – Assessoria Popular
  53. Ile Ase Opo Iya Olodoide
  54. Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – IDMJR
  55. Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas
  56. Instituto Brasileiro de Ciência Criminais – IBCCRIM
  57. Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela
  58. Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH
  59. Instituto de Defesa da População Negra
  60. Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD
  61. Instituto de Estudos da Religião – ISER
  62. Instituto de Formação Humana e Educação Popular
  63. Instituto Sou da Paz 
  64. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC
  65. Instituto de Transformação e Reintegração do Ceará- Intra
  66. Centro de Assessoria Jurídica Universitária/Cajú Ceará
  67. Justiça Global
  68. Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ
  69. Liberta Elas 
  70. LBL – Liga Brasileira de Lésbicas
  71. Mães de Maio do Cerrado
  72. Mães Em Luto da Zona Leste SP
  73. Mandata da Deputada Estadual Renata Souza
  74. Mandata da Deputada Federal Taliria Petrone
  75. Movimenta Caxias 
  76. Movimento Candelária  Nunca  Mais
  77. Movimento D’ELLAS
  78. MCP – Movimento dos Conselhos Populares
  79. Movimento Negro Unificado – Ceará
  80. Movimento Mães de Manguinhos
  81. Movimento de Mães, Familiares e Amigos das Pessoas Privadas de Liberdade do Rio Grande do Norte
  82. Movimento Moleque
  83. Movimento Negro Unificado
  84. Movimento RUA – Juventude Anticapitalista
  85. Mulheres Negras Decidem
  86. Museu da Maré
  87. NAPAVE
  88. Nova Frente Negra Brasileira 
  89. Núcleo especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo 
  90. Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF
  91. ONG Criola
  92. ONG Eu Sou Eu
  93. Parem de Nos Matar
  94. Pastoral Carcerária Nacional – CNBB
  95. Por Nós
  96. Programa Direito e Relações Raciais da UFBA
  97. Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – Rede REFORMA
  98. Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares do Ceará (RENAP Ceará)
  99. Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência 
  100. Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Fluminense
  101. Rede Justiça Criminal 
  102. Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado
  103. RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas
  104. Sindicato dos Advogados de São Paulo
  105. Terra de Direitos 
  106. Visão Mundial
  107. Instituto Equânime – Afro Brasil
  108. Instituto Probono