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Um lampejo de garantismo

Isadora Fingermann
Diretora Executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 08 de janeiro de 2016.

Este não foi um ano bom para o direito de defesa.

Mas, no apagar das luzes da atividade legislativa de 2015, há finalmente o que comemorar: foi aprovado, no plenário do Senado Federal, o projeto de lei da Câmara dos Deputados nº 78/2015, que entre outras medidas torna obrigatória a presença e assistência de defesa técnica no ato do interrogatório policial.

Não poderia acertar mais a inovação legislativa, já que o exercício amplo e irrestrito do direito de defesa é garantia fundamental em um estado democrático de direito, prevista constitucionalmente (CF, inc. 5o, LV), pressuposto para a efetivação do devido processo legal e, consequentemente, para um processo penal justo e equilibrado.

Não há, contudo, pleno exercício do direito de defesa sem a garantia a uma assistência jurídica eficaz e de qualidade, com paridade de armas em relação à acusação e efetivada em todo e qualquer momento da persecução penal, do seu nascedouro, no inquérito policial, ao seu término, ao final da execução da pena. Bem por isso que a Constituição Federal elenca entre os direitos de toda pessoa presa, a assistência de um advogado (CF, art. 5o, LXIII, g.n.).

A normativa internacional não é em nada diferente. As Nações Unidas, “reconhecendo que a assistência jurídica é um elemento essencial para o funcionamento do sistema de justiça criminal em um estado democrático de direito, pressuposto para o exercício de outros direitos, inclusive o direito a um processo justo, além de uma importante garantia que assegura a equidade de forças e a confiança da opinião pública no processo criminal”, determina que “os Estados devem garantir o direito à assistência jurídica nos seus sistemas legais, inclusive, quando aplicável, constitucionalmente”[1].

Ainda segundo os princípios da ONU, “os Estados devem assegurar que qualquer pessoa detida, presa, suspeita ou acusada de um crime punível com prisão ou com a pena de morte tem direito à assistência jurídica em todos os estágios do processo penal”[2].

Nesse cenário, é certo que o direito à defesa técnica surge desde a fase investigativa, especialmente no momento do interrogatório policial.

É bem verdade que omissões no aparato legal em vigor fazem com que a ausência de defesa técnica nessa etapa seja considerada formalmente regular. No entanto, uma leitura mais detida do Código de Processo Penal autorizaria sustentar que, mais do que direito, parece ser pressuposto de validade do interrogatório realizado na delegacia de polícia a presença e assistência de um advogado ou defensor público.

É o que se extrai da leitura do artigo 6o, inciso V, do Código de Processo Penal, segundo o qual o interrogatório policial deve observar, no que for aplicável, as regras previstas pelo mesmo diploma legal para o interrogatório judicial, entre elas a garantia à presença de advogado no ato, prevista em mais de uma oportunidade no texto de lei.

No artigo 185 do CPP, por exemplo, destaca o Legislador que “o acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”; complementa, ainda, o §1o do mesmo artigo 185 que “o interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas (…) a presença do defensor e a publicidade do ato”.

Mas não é só. O §5o do mesmo dispositivo legal vai além, assegurando que “em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com seu defensor”.

Sendo assim, uma leitura sistemática da Constituição Federal e do Código de Processo Penal nos conduz à conclusão inexorável de que o interrogatório – seja ele judicial ou policial – deveria ser considerado nulo, se desacompanhado de advogado constituído ou nomeado.

Entretanto, assim não entendem majoritariamente nossos Tribunais, de modo que em muito boa hora veio a aprovação pelo Senado Federal do projeto de lei da Câmara dos Deputados no 78/2015, que propõe alterações no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

Entre outras mudanças, a louvável iniciativa legislativa acrescentou o inciso XXI ao artigo 7o do Estatuto da Advocacia, segundo o qual é direito do advogado: “ assistir aos seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e subsequentemente de todos os elementos investigatórios e probatórios acaso dele, direta ou indiretamente, decorrente ou derivado, bem como o direito de, no curso da mesma apuração: a) apresentar razões e quesitos; b) requisitar diligências”.

Como irretocavelmente destacou o parecer aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (CCJ/SF), “a proposta é bem-vinda e reforça a importância do advogado para a administração da justiça, conforme declara a própria Constituição Federal (art. 133)”; complementando que “em relação ao processo penal propriamente dito, garante a presença e a assessoria constante do advogado, com possibilidade de influenciar concretamente nos rumos da instrução, como prega o modelo acusatório”.

Não poderia acertar mais o parecer aprovado, na medida em que a assistência de defesa técnica desde os primeiros momentos do inquérito policial seguramente tem o condão de interferir diretamente nos rumos da instrução penal e, consequentemente, no desfecho da ação penal. As primeiras narrativas sobre o fato investigado acabam por influenciar substancialmente todos os desdobramentos do processo. Assim, ao invés de serem corrigidas na fase judicial, as irregularidades na fase de inquérito policial acabam se consolidando.

Recente pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)[3] demonstrou, entre diversos outros dados, que, quando assistidos por um advogado desde o primeiro momento do inquérito policial a imensa minoria dos investigados optou por permanecer em silêncio na delegacia de polícia. Por outro lado, a maior parte daqueles que não puderam contar com assistência jurídica durante o interrogatório policial optou por permanecer em silêncio, deixando a versão dos policiais militares isolada e sem contraponto nos autos.

A mesma pesquisa apontou, ademais, que, nas hipóteses em que foi garantida a defesa técnica na delegacia de polícia, decorreu menos de uma semana para ser formulado o primeiro pedido de liberdade em juízo, enquanto, para casos em que não havia advogado durante a lavratura do auto de prisão em flagrante, o tempo médio para postulação de liberdade foi maior do que um mês.

Esses dois dados já são suficientes para demonstrar o impacto da presença de um advogado desde o limiar do processo, na fase investigativa, comprovando definitivamente a imprescindibilidade de tornar obrigatória a presença de advogado no ato do interrogatório policial. Merece aplauso, portanto, a alteração legislativa.

O Congresso Nacional não tem mostrado muito apreço por direitos e garantias fundamentais; tampouco nossos julgadores e nem mesmo a opinião pública. Quando há, então, um lampejo de garantismo entre aqueles que ditam nossos caminhos devemos festejar. 2015 não foi um ano bom para o direito de defesa, mas há alguns poucos – muito poucos – motivos para erguer a taça neste final de ano.

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[1] Tradução livre do ingles: “… recognizing that legal aid is an essential element of a functioning criminal justice system that is based on the rule of law, a foundation for the enjoyment of other rights, including the right to a fair trial, and an important safeguard that ensures fundamental fairness and public trust in the criminal justice process, States should guarantee the right to legal aid in their national legal systems at the highest possible level, including, where applicable, in the constitution” (United Nations Principles and Guidelines on Access to Legal Aid in Criminal Justice Systems, principle 1).
[2] Tradução livre do ingles: “States should ensure that anyone who is detained, arrested, suspected of, or charged with a criminal offense punishable by a term of imprisonment or the death penalty is entitled to legal aid at all stages of the criminal justice process” (United Nations Principles and Guidelines on Access to Legal Aid in Criminal Justice Systems, principle 3).
[3] Durante o ano de 2014 o IDDD realizou o projeto “Primeira Defesa”, por meio do qual, durante 9 meses, 35 advogados voluntários do Instituto fizeram 33 plantões em delegacias de polícia de São Paulo, disponibilizando-se a gratuitamente acompanhar a lavratura do auto de prisão em flagrante e, consequentemente, o interrogatório policial. Posteriormente, uma advogada do IDDD acompanhou estes casos, comparando-os a outros de controle, a fim de verificar o impacto da presença de defesa técnica desde os primeiros momentos do processo. Os resultados da pesquisa demonstram a relevância da presença de um advogado desde o início, especialmente durante o interrogatório policial.

 

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