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Sobre o enriquecimento ilícito de agentes públicosSobre o enriquecimento ilícito de agentes públicos

José Carlos Abissamra Filho 
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 14 de dezembro de 2016.

Muito embora a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos tenha sido já retirada do Projeto de Lei da Câmara 80/2016, em discussão no Senado Federal, o fato é que o tema vem e volta com alguma frequência nos debates nacionais. O tipo penal em comento compunha a segunda medida supostamente contra a corrupção proposta pelo MPF/Caso Lava Jato. É dele que iremos tratar, portanto.

O sistema jurídico pátrio vem absorvendo aos poucos suspeitas automáticas e a priori contra aqueles que exercem funções públicas, entendendo que são suspeitos, a menos que provem o contrário. A ideia de que o funcionário público é suspeito vem ganhando força nos últimos anos, tanto no sistema jurídico interno como externo.

O sistema de combate à lavagem de dinheiro, por exemplo, considera suspeitos todos os “agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países, territórios e dependências estrangeiras, cargos, empregos ou funções públicas relevantes, assim como seus representantes, familiares e estreitos colaboradores”[1]. Segundo a Resolução nº 16, de 28 de Março de 2007, do COAF, a qual teve a função de trazer para o sistema jurídico nacional as recomendações do FATF – international standards on combating money laundering  and the financing of  terrorism & proliferation (The FATF Recommendations)[2]:

Art. 1º. (…)

§ 1º Consideram-se pessoas politicamente expostas os agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países, territórios e dependências estrangeiras, cargos, empregos ou funções públicas relevantes, assim como seus representantes, familiares e estreitos colaboradores.

§ 2º No caso de pessoas politicamente expostas brasileiras, para efeito do § 1º devem ser abrangidos:

I – os detentores de mandatos eletivos dos Poderes Executivo e Legislativo da União;

II os ocupantes de cargo, no Poder Executivo da União:

a) de Ministro de Estado ou equiparado;
b) de Natureza Especial ou equivalente;
c) de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista;
d) do Grupo Direção e Assessoramento Superiores – DAS, nível 6, e equivalentes;

III – os membros do Conselho Nacional de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores;

IV – os membros do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República, o Vice-Procurador-Geral da República, o Procurador-Geral do Trabalho, o Procurador-Geral da Justiça Militar, os Subprocuradores-Gerais da República e os Procuradores-Gerais de Justiça dos estados e do Distrito Federal;

V – os membros do Tribunal de Contas da União e o Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União;

VI – os governadores de Estado e do Distrito Federal, os presidentes de Tribunal de Justiça, de Assembléia Legislativa e de Câmara Distrital e os presidentes de Tribunal e de Conselho de Contas de Estado, de Municípios e do Distrito Federal;

VII – os Prefeitos e Presidentes de Câmara Municipal de capitais de Estados. (…)[3]

Ainda, segundo o artigo 17-D da lei 9.613/98: “Em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno.”

Recentemente, a Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, a chamada lei de repatriação, trouxe também suspeitas automáticas e a priori contra aqueles que exercem funções públicas. Segundo o art. 11 da referida lei: “Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.”

De forma semelhante, o sistema de combate à lavagem de dinheiro, na dúvida, presume a ilicitude dos bens, direitos ou valores eventualmente apreendidos, presumindo que são oriundos de crime, até que se prove o contrário. Conforme o § 2o do artigo 4º da lei 9.613/98: “O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem (…)”. Ou seja, se a parte não conseguir comprovar a licitude da origem dos bens, direitos e valores apreendidos, não serão liberados.

Bem se vê que, independentemente da eventual inconstitucionalidade destas suspeitas automáticas e a priori, o fato é que legislações têm colocado aqueles que exercem funções públicas nesta posição de suspeitos. Nós, evidentemente, não concordamos com este estado de desconfianças e suspeitas generalizadas. Conforme dissemos em artigo no qual questionamos se caberia discutir a constitucionalidade do sistema de combate à lavagem de dinheiro: “suspeitar de forma institucionalizada de todos os ‘agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado (…) funções públicas relevantes’ seria um excesso aparentemente indiscriminado.”[4]

Mas o fato é que essa parece ser a ordem em vigor: suspeitar.

A segunda medida supostamente contra a corrupção proposta pela MPF/Caso Lava Jato – é assim que eles se identificam no site: MPF e Caso Lava Jato[5] – está em perfeita consonância com as suspeitas generalizadas acima. Trata-se da proposta de criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos. Segundo o MPF/Caso Lava Jato: “O enriquecimento ilícito de servidor público decorre comumente da prática de corrupção e crimes conexos. No entanto, como ressaltado no projeto, é muito difícil punir o crime de corrupção, salvo quando uma das partes revela sua existência, o que normalmente não acontece.”[6] É nesta esteira que vem a proposta do MPF/Caso Lava Jato de criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos.

O tipo penal proposto, então, seria o seguinte:

Enriquecimento ilícito

Art. 312-A. Adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público, ou por pessoa a ele equiparada, em razão de seu cargo, emprego, função pública ou mandato eletivo, ou auferidos por outro meio lícito:

Pena – prisão, de 3 (três) a 8 (oito anos), e confisco dos bens, se o fato não constituir elemento de crime mais grave.

§ 1º Caracteriza-se o enriquecimento ilícito ainda que, observadas as condições do caput, houver amortização ou extinção de dívidas do servidor público, ou de quem a ele equiparado, inclusive por terceira pessoa.

§ 2º As penas serão aumentadas de metade a dois terços se a propriedade ou a posse dos bens e valores for atribuída fraudulentamente a terceiras pessoas.[7]

Independentemente de a tipificação proposta merecer maior reflexão de uma forma geral – como de fato merece -, o tipo penal acima, a nosso ver, viola o princípio da legalidade, da taxatividade, ou da tipicidade estrita, com efeito, é confuso e demasiadamente amplo.

O tipo penal diz que o valor adquirido, por exemplo, tem que ser incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público. Ou seja, então adquirir, em razão de seu cargo, bens cujo valor seja compatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público seria lícito? Ou, alugar, em razão de seu cargo, bem cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público seria crime; mas alugar bem em razão de seu cargo cujo valor seja compatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público seria lícito? O tipo penal não está bem escrito nem, muito menos, bem pensado. Tanto é verdade que a parte final do caput, aparentemente, não faz sentido: “ou auferidos por outro meio lícito”.

Na dúvida, adotamos a posição de Luís Greco:

O MPF, à falta de qualquer teoria sobre o desvalor do comportamento que quer ver criminalizado, tateia como o cego e enumera setes condutas distintas (adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir). A criminalização segue o modelo do que alguns vêm chamando de “técnica espingarda de cano serrado”.(8) É evidente que esse modelo de tipificação abrange comportamentos que não possuem o conteúdo de desvalor que a justifica, o que o torna problemático segundo a perspectiva do princípio da culpabilidade, e que ele pouco se adéqua ao mandato de determinação dos tipos penais (art. 5.º, XXXIX, da CF)[8]

Conforme conclui o autor:

Em conclusão: a proposta do MPF de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada. Ela se baseia em considerações policialescas de facilitação da prova, incompatíveis com a ideia de culpabilidade e a presunção de inocência (supra, 2), e que, ainda por cima, parecem ser de duvidosa eficácia (supra, 5, c). É verdade que talvez – sublinhe-se o talvez – seja possível fundamentar, a partir do princípio da proteção de bens jurídicos, um desvalor autônomo da conduta em questão, que justificaria em tese a criminalização (supra, 3). Ocorre que qualquer esforço de criminalização tem de ser submetido a um escrutínio cuidadoso, que avalie, além da correção do argumento desenvolvido em caráter declaradamente provisório, a compatibilidade do tipo penal com o nemo tenetur, a ideia de ultima ratio e, por fim, a sua concreta necessidade diante da existência de um direito penal material já bastante abrangente (supra, 5). Coletar assinaturas não tornam desnecessários argumentos.[9]

Bem se vê que a proposta de criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos formulada pelo MPF/Caso Lava Jato é absolutamente carente de legitimidade, necessitando de muito mais reflexão. Por exemplo, é de indagar-se: acaso realmente decida-se pela tipificação, não seria o caso de considerar, eventualmente, um tipo penal de natureza omissiva? Pondo-se a refletir, Luís Greco, mais uma vez, discorre:

A construção seria a seguinte: a obtenção de valores de certa monta pelo funcionário contradiz, ao menos prima facie ou em aparência, a ideia de serviço público no interesse público; daí derivaria o dever de prestar contas desses valores, de modo a afastar qualquer suspeita dessa aparente contradição. O descumprimento desse dever de prestação de contas, dever esse que teria de ser previsto de forma precisa, provavelmente em outro diploma, seria o comportamento típico em questão.[10]

Bem. É preciso pensar com calma, num ambiente de tranquilidade e normalidade institucional. Legislar não é um exercício de tentativa e erro, mas de profunda discussão e reflexão, tendo por base os valores mais sagrados insculpidos na nossa Carta Magna. Este açodamento do MPF/Caso Lava Jato e do próprio Congresso Nacional, ambos tentando legitimar-se surfando uma onda do momento, tem causado graves problemas, frequentemente colocando o Brasil à beira de abismos perniciosos. Precisamos colocar um basta nestes holofotes midiáticos que também atentam contra a moralidade pública. Afinal, a impessoalidade e a moralidade contidas no artigo 37 da Carta Magna submete todos – não somente alguns, mas todos! – aqueles que exercem função pública, desautorizando shows de índoles duvidosas realizados com o dinheiro público.

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[1] Art. 1º, § 1º, da Resolução nº 16/2007 do COAF.
[2] Segundo definições contidas no glossário das recomendações do FATF, pessoas politicamente expostas seriam: “Foreign PEPs are individuals who are or have been entrusted with prominent public functions by a foreign country, for example Heads of State or of government, senior politicians, senior government, judicial or military officials, senior executives of state owned corporations, important political party officials.

Domestic PEPs are individuals who are or have been entrusted domestically with prominent public functions, for example Heads of State or of government, senior politicians, senior government, judicial or military officials, senior executives of state owned corporations, important political party officials.

Persons who are or have been entrusted with a prominent function by an international organisation refers to members of senior management, i.e. directors, deputy directors and members of the board or equivalent functions.

The definition of PEPs is not intended to cover middle ranking or more junior individuals in the foregoing categories.” (http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/recommendations/pdfs/FATF_Recommendations.pdf – acesso em 04.12.2016, às 10:35 hs)
[3] http://www.coaf.fazenda.gov.br/legislacao-e-normas/normas-do-coaf/coaf-resolucao-no-016-de-28-de-marco-de-2007-1 (acesso em 04.12.2016, às 15:42 hs)
[4] ABISSAMRA FILHO, José Carlos. Cabe discutir a constitucionalidade do sistema de combate à lavagem de dinheiro? in Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 24, vol 123, set. 2016, p. 65.
[5] http://lavajato.mpf.mp.br/ – acesso em 04.12.2016, às 01:00 hs.
[6] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_2_versao-2015-06-25.pdf – acesso em 04.12.2016, às 01:00 hs.
[7] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_2_versao-2015-06-25.pdf  – acesso em 04.12.2016, às 01:11 hs
[8] GRECO, Luís. Reflexões provisórias sobre o crime de enriquecimento ilícito. in Boletim Ibccrim. Ano 23 – nº 277 – Dezembro/2015, p. 8
[9] GRECO, Luís. Reflexões provisórias sobre o crime de enriquecimento ilícito. in Boletim Ibccrim. Ano 23 – nº 277 – Dezembro/2015, p. 8
[10] GRECO, Luís. Reflexões provisórias sobre o crime de enriquecimento ilícito. in Boletim Ibccrim. Ano 23 – nº 277 – Dezembro/2015, p. 8

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