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Recuperar a presunção de inocência

Guerra de decisões no STF evidencia importância de julgamento definitivo sobre prisão após condenação em segunda instância

Em decisão liminar expedida na tarde de ontem (19) no âmbito da ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade) 54, da qual é o relator, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio determinou a soltura de todas as pessoas em execução provisória da pena – ou seja, que foram condenadas em segunda instância, mas ainda não esgotaram as possibilidades de recurso. A medida não contemplava presos preventivamente – excluía, portanto, as pessoas que, na visão dos juízes, poderiam oferecer risco à sociedade.

A decisão monocrática de Marco Aurélio foi derrubada horas depois pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, em resposta a pedido da Procuradoria-Geral da República.

O julgamento da ADC 54 avalia a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que afirma que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência da sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Uma pesquisa feita pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostra o impacto que uma decisão definitiva sobre o tema poderia ter sobre o sistema prisional brasileiro: a partir da análise de quase 900 processos que chegaram ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), verificou-se que 49% dos habeas corpus favoreceram os réus, assim como 41% dos recursos especiais. Isso significa que os tribunais superiores atenuaram as penas impostas pelas instâncias inferiores ou absolveram os acusados em quase metade dos casos.

O IDDD participa da ADC 54 como amicus curiae – um instrumento que oferece aos ministros do STF uma opinião técnica independente sobre o tema julgado. Para Fábio Tofic Simantob, presidente do Instituto, a guerra de decisões evidencia que a prisão após condenação em segunda instância está assentada em uma maioria frágil, que possivelmente será revertida quando a matéria for analisada pelo plenário da Corte.

“Como vamos prender pessoas condenadas em segunda instância agora sabendo que daqui a pouco meses o STF poderá determinar sua soltura? Não existe qualquer plausibilidade jurídica em manter pessoas presas nessas condições. Não podemos sustentar o encarceramento em uma maioria frágil, especialmente quando temos como norte o princípio da liberdade como regra, e não exceção.”

Para ele, ainda, a questão é urgente por impactar “um sistema prisional que, de acordo com o próprio STF, opera em bases absolutamente inconstitucionais”.

“Os números mostram que, quando o preso tem a possibilidade de recorrer, em muitos casos as decisões das instâncias superiores são favoráveis no sentido de rever decisões condenatórias, reduzir penas ou ao converter prisões em penas restritivas de direito. Estamos falando aqui de reduzir injustiças e de garantir o amplo direito à defesa. Precisamos reafirmar o sentido mais básico da presunção de inocência – e isso passa por colocar o tema em julgamento no plenário o mais rápido possível.”

Entenda o caso

Em 2009 o STF enfrentou o tema da execução provisória da pena no julgamento de um pedido de habeas corpus relatado pelo então ministro Eros Grau. Na ocasião, a Corte, por 7 a 4, decidiu que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente poderia ser decretada a título cautelar.

Esse entendimento valeu até 2016. Em um caso de habeas corpus relatado pelo ministro Teori Zavascki e julgado em fevereiro daquele ano, a Corte passou a admitir, por sete votos a quatro, a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da condenação.

Em outubro daquele mesmo ano, o STF deu início ao julgamento de duas ADCs, a 43 e a 44, que questionavam esse entendimento. A decisão foi apertada: por sete votos a seis, a Corte determinou que não havia incompatibilidade entre a execução provisória da pena e o respeito ao artigo 283 do CPP. Foram vencidos os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Dias Toffoli.

Um dos ministros que votou pela manutenção da possibilidade de prisão após segunda instância foi o ministro Gilmar Mendes, que desde então reviu sua posição e tem concedido inúmeros habeas corpus para suspender prisões após segunda instância.

Em um Recurso Extraordinário com Agravo (964.246), também relatado por Zavascki e julgado em novembro de 2016, uma maioria de 6 a 4 decidiu, através do plenário virtual do Supremo, reafirmar a execução provisória da condenação, mesmo havendo a possibilidade de recurso a instâncias superiores. A ministra Rosa Weber não se manifestou no caso.

Mais recentemente, no habeas corpus 152.752 apresentado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e julgado em abril de 2018, a ministra discordou do entendimento da Corte sobre a possibilidade de execução da pena antes de esgotados os recursos, reafirmando o seu voto de 2016, mas disse respeitar a colegialidade, ajudando a formar uma maioria (com ressalvas) para manter a possibilidade de prisão depois da segunda instância.